Este texto foi publicado no jornal Seguinte, em 06/02/2020.
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Você não deve lembrar-se de mim. Não se preocupe, eu não quero
constrangê-lo. É compreensível que você não lembre, pelo menos
conscientemente; afinal, se eu ainda existo, é porque a lembrança está
por aí, em algum lugar, inativa mas ainda viva.
Você me criou quando tinha 5 anos de idade, e batizou-me de Johnny.
Por muito tempo eu detestei esse nome, mas hoje eu até compreendo. Você
não tinha lá muitas referências brasileiras naquela época, e, para
alguém com um nome tão prosaico quanto Francisco, devia ser o máximo ter
um amigo chamado Johnny, mesmo sendo um amigo imaginário.
Eu lembro como você me invocava para brincar com você. Era esquisito
você olhar para dentro de sua consciência e encontrar-me lá, mas você se
divertia, ainda que ficasse encabulado quando algum adulto mencionava a
minha existência. Imagine só: tão jovem, e já aprendendo a reprimir-se.
Lembro que nossa amizade não durou muito; uns dois anos, talvez?
Também sei que ela não acabou de repente. Aos poucos, você foi
esquecendo-se de mim, e eu fui ficando lá, um eterno morador das ruas e
alamedas do seu inconsciente, vagando pelos seus becos, entrando nos
bueiros, contemplando os emaranhados de fios elétricos dependurados dos
seus postes, admirando o cinza e o marrom de suas paisagens.
Não sei se você reprimiu a lembrança da minha existência por
vergonha, ou se foi apenas a negligência com suas referências de
infância. Você se permitiu ser nostálgico apenas pelo que os outros
disseram que podia; videogame, desenhos animados, comerciais de TV. As
coisas que eram unicamente suas, você deixou para trás. Eu nunca tive a
impressão de ser um excelente amigo imaginário, mas eu era unicamente
seu. Isso já era uma distinção, mas não bastou para você.
Além disso, é claro, há o medo da própria imaginação em si, ao ponto
da própria palavra ser algo repulsivo. “Imaginação”, veja só que coisa
mais piegas. Você aprendeu que só pode usá-la quando se trata de
inventar novos produtos, criar “inovações” que melhorem a vida da
sociedade; o design thinking e tal. Fora isso, a imaginação só serve
quando você se masturba antes de sair de casa, pensando na moça do RH,
ou na atendente da padaria, e todas as coisas que você faria com ela se
tivesse coragem, ainda que fosse à força—“no fim elas acabariam
gostando”, é o que você pensa, antes de sucumbir à vergonha, à culpa e à
autopunição.
Não fique chocado ao me ver falando dessas coisas, pois eu cresci
junto com você, eu envelheci com você. Eu sei de muita coisa, mas calma;
eu não digo isso para causar embaraço. Para mim, todo dia é uma chance
de exercer o não-julgamento, e ultimamente eu tenho feito isso bem, até.
Eu só lamento que você tenha tamanha dificuldade para fazer hoje as
coisas que eram naturais e óbvias na sua infância. Pensando bem, porém,
acho que nem é que seja difícil: você apenas esqueceu. Essa
criatividade, essa insatisfação com o mundo cotidiano, agora é um
resquício dentro da sua mente, e talvez eu seja o único portador disso.
Volta e meia, eu ainda consigo manifestar-me. Sabe quando você caminha
na rua evitando pisar no rejunte das lajes, como se fosse um jogo? Ou
quando você pensa em uma frase e começa a cantá-la, improvisando uma
melodia idiota, até que alguém percebe e você disfarça e tosse? Ou
aquela piada horrível que você inventou um dia, pensou em publicar no
Twitter, mas decidiu deixar pra lá? Lembra? “Eu comprei um cobertor que
luta jiu-jitsu, e ele me cobriu de porrada.” Pois sou eu.
Eu não quero que você sinta orgulho de mim, acredite. Não é isso. Eu
apenas queria que você conseguisse sair dessa névoa densa de
conformidade, nem que seja de vez em quando, mas que seja com vontade.
Eu sei que, no fim das contas, nós nos acostumamos com as coisas, mas
será que vale a pena acostumar-se com tudo? Será que você se sente
realmente bem com a sua mente decepada? Eu acho difícil acreditar, mas
tudo bem; eu sei que posso estar errado. Eu não conheço você totalmente,
apesar de ter vivido por aqui todo esse tempo, vendo o vazio dessas
suas ruas e esquinas, com quase nenhuma praça, apenas um canteirinho de
flores aqui e acolá, um punhado de árvores, estrategicamente
posicionadas para não tapar os anúncios publicitários. Eu vejo sua
carência de museus, a ausência de teatros, uma que outra igreja, velhos
cinemas que viraram bingos e depois viraram nada.
Por outro lado, eu escalo os edifícios e, do alto, eu enxergo seus
anseios, suas vontades, as ruas tortas e perdidas que buscam algo que
não está lá, cores desbotadas nos muros, adornos descascados nas
fachadas dos prédios, pequenas dúvidas e hesitações nos ângulos quase
retos das esquinas. Eu sei que nem tudo é tão igual, nem tudo é tão
previsível, e, se houver alguma maneira de eu lhe mostrar isso, eu o
faria sem pestanejar.
Talvez assim você consiga até fazer deste mundo interior um lugar
mais fascinante do que o mundo lá fora. Ou talvez você aprenda a olhar
para o mundo exterior e ver coisas que você jamais imaginara. Quem sabe,
assim, algo de novo aconteça.
Mas não se preocupe comigo. Eu ainda tenho muita coisa para descobrir dentro de você.