Este texto foi publicado no jornal Seguinte, em 06/02/2020.
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Você não deve lembrar-se de mim. Não se preocupe, eu não quero
constrangê-lo. É compreensível que você não lembre, pelo menos
conscientemente; afinal, se eu ainda existo, é porque a lembrança está
por aí, em algum lugar, inativa mas ainda viva.
Você me criou quando tinha 5 anos de idade, e batizou-me de Johnny.
Por muito tempo eu detestei esse nome, mas hoje eu até compreendo. Você
não tinha lá muitas referências brasileiras naquela época, e, para
alguém com um nome tão prosaico quanto Francisco, devia ser o máximo ter
um amigo chamado Johnny, mesmo sendo um amigo imaginário.
Eu lembro como você me invocava para brincar com você. Era esquisito
você olhar para dentro de sua consciência e encontrar-me lá, mas você se
divertia, ainda que ficasse encabulado quando algum adulto mencionava a
minha existência. Imagine só: tão jovem, e já aprendendo a reprimir-se.
Lembro que nossa amizade não durou muito; uns dois anos, talvez?
Também sei que ela não acabou de repente. Aos poucos, você foi
esquecendo-se de mim, e eu fui ficando lá, um eterno morador das ruas e
alamedas do seu inconsciente, vagando pelos seus becos, entrando nos
bueiros, contemplando os emaranhados de fios elétricos dependurados dos
seus postes, admirando o cinza e o marrom de suas paisagens.
Não sei se você reprimiu a lembrança da minha existência por
vergonha, ou se foi apenas a negligência com suas referências de
infância. Você se permitiu ser nostálgico apenas pelo que os outros
disseram que podia; videogame, desenhos animados, comerciais de TV. As
coisas que eram unicamente suas, você deixou para trás. Eu nunca tive a
impressão de ser um excelente amigo imaginário, mas eu era unicamente
seu. Isso já era uma distinção, mas não bastou para você.
Além disso, é claro, há o medo da própria imaginação em si, ao ponto
da própria palavra ser algo repulsivo. “Imaginação”, veja só que coisa
mais piegas. Você aprendeu que só pode usá-la quando se trata de
inventar novos produtos, criar “inovações” que melhorem a vida da
sociedade; o design thinking e tal. Fora isso, a imaginação só serve
quando você se masturba antes de sair de casa, pensando na moça do RH,
ou na atendente da padaria, e todas as coisas que você faria com ela se
tivesse coragem, ainda que fosse à força—“no fim elas acabariam
gostando”, é o que você pensa, antes de sucumbir à vergonha, à culpa e à
autopunição.
Não fique chocado ao me ver falando dessas coisas, pois eu cresci
junto com você, eu envelheci com você. Eu sei de muita coisa, mas calma;
eu não digo isso para causar embaraço. Para mim, todo dia é uma chance
de exercer o não-julgamento, e ultimamente eu tenho feito isso bem, até.
Eu só lamento que você tenha tamanha dificuldade para fazer hoje as
coisas que eram naturais e óbvias na sua infância. Pensando bem, porém,
acho que nem é que seja difícil: você apenas esqueceu. Essa
criatividade, essa insatisfação com o mundo cotidiano, agora é um
resquício dentro da sua mente, e talvez eu seja o único portador disso.
Volta e meia, eu ainda consigo manifestar-me. Sabe quando você caminha
na rua evitando pisar no rejunte das lajes, como se fosse um jogo? Ou
quando você pensa em uma frase e começa a cantá-la, improvisando uma
melodia idiota, até que alguém percebe e você disfarça e tosse? Ou
aquela piada horrível que você inventou um dia, pensou em publicar no
Twitter, mas decidiu deixar pra lá? Lembra? “Eu comprei um cobertor que
luta jiu-jitsu, e ele me cobriu de porrada.” Pois sou eu.
Eu não quero que você sinta orgulho de mim, acredite. Não é isso. Eu
apenas queria que você conseguisse sair dessa névoa densa de
conformidade, nem que seja de vez em quando, mas que seja com vontade.
Eu sei que, no fim das contas, nós nos acostumamos com as coisas, mas
será que vale a pena acostumar-se com tudo? Será que você se sente
realmente bem com a sua mente decepada? Eu acho difícil acreditar, mas
tudo bem; eu sei que posso estar errado. Eu não conheço você totalmente,
apesar de ter vivido por aqui todo esse tempo, vendo o vazio dessas
suas ruas e esquinas, com quase nenhuma praça, apenas um canteirinho de
flores aqui e acolá, um punhado de árvores, estrategicamente
posicionadas para não tapar os anúncios publicitários. Eu vejo sua
carência de museus, a ausência de teatros, uma que outra igreja, velhos
cinemas que viraram bingos e depois viraram nada.
Por outro lado, eu escalo os edifícios e, do alto, eu enxergo seus
anseios, suas vontades, as ruas tortas e perdidas que buscam algo que
não está lá, cores desbotadas nos muros, adornos descascados nas
fachadas dos prédios, pequenas dúvidas e hesitações nos ângulos quase
retos das esquinas. Eu sei que nem tudo é tão igual, nem tudo é tão
previsível, e, se houver alguma maneira de eu lhe mostrar isso, eu o
faria sem pestanejar.
Talvez assim você consiga até fazer deste mundo interior um lugar
mais fascinante do que o mundo lá fora. Ou talvez você aprenda a olhar
para o mundo exterior e ver coisas que você jamais imaginara. Quem sabe,
assim, algo de novo aconteça.
Mas não se preocupe comigo. Eu ainda tenho muita coisa para descobrir dentro de você.
Contos e histórias diversas, publicadas na esperança de que algum incauto leia.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2020
domingo, 26 de janeiro de 2020
O Orgulho do Pai
Este conto foi publicado no jornal Seguinte, no dia 22/01/20.
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A mulher abriu o quarto, e o rapaz entrou logo em seguida. Ele mal
tomou conhecimento da deficiência estética do lugar e da escolha
puramente pragmática dos móveis, e apenas sentou-se na cama
enquanto a mulher acendia as luzes.
Pelo menos o quarto era
silencioso, protegido do barulho e da movimentação do andar de
baixo, onde as outras mulheres buscavam atenção dos homens, umas
com um olhar bastante entediado e cansado. O rapaz tentou demorar o
menos que pode para escolher aquela mulher, para livrar-se do
ambiente inóspito e insalubre, de pouca luz, muito ruído, e homens
cuja companhia ele jamais desejaria.…
Ele queria pensar que a
escolha da mulher fora aleatória, apesar de ela ter uma aparência
talvez compatível com os gostos dele; ela tinha não menos do que
trinta-e-poucos anos, mas com algo de jovial na expressão facial e
nos cabelos curtos e lisos, usando óculos, blusa e minissaia
modestas para os padrões da casa, como se tentasse incorporar o tipo
“inocente”. Tudo era apenas um palpite dele, porém. Era a
primeira vez que ele estava ali—e quiçá a última—e ele não
conhecia os tipos, as preferências e os fetiches. Ele seguiu a
intuição, escolheu a primeira que lhe pareceu disponível e subiu
as escadas com ela; tudo sob o olhar onipotente do pai, um senhor de
pouco mais de 40 anos, que tentava parecer mais velho e mais vivido
do que ele era.
Essa era outra coisa
boa de estar no quarto: o pai não estava ali. Estava apenas a
mulher, trancando a porta, e virando-se para ele, já usando de sua
linguagem corporal para tentar agradá-lo.
“Eu só vou tomar um
banho rapidinho antes da gente começar, tá bom?” ela disse.
O rapaz deu de ombros,
exagerando a expressão de desdém. “Faz o que tu quiser.”
Ela parou, encarando-o
por um instante. “Eu tô aqui pra fazer o que tu quiser, moço.”
“Então não faz
nada,” ele retrucou, cruzando os braços, olhando para um canto
qualquer da sala.
O banheiro tinha as
paredes de cerâmica branca, que contrastava com as cores escuras e
abafadas do quarto, e gritava nos olhos dele. Ele tinha os braços e
as pernas cruzadas, tentando não reparar em nada, mas o berro branco
do banheiro irritava-lhe.
A mulher deu um
sorriso, disfarçando a perplexidade. “Não fazer nada? Tem
certeza?”
“Sim. Tenho, sim”
ele disse.
“Mas daí a gente vai
passar uma hora aqui parado?” ela disse, sentando-se ao lado dele,
o tom de voz já um pouco diferente.
“É, melhor assim,”
o rapaz respondeu, tentando manter o tom decidido, apesar da voz
murcha.
“Se tu não se
importa de perguntar,” ela disse, após uma pausa, “tu veio aqui
por quê?”
Ele olhou para a mulher
com o canto dos olhos, por um breve instante. “Por causa do meu
pai, tu não viu?”
“Ele te obrigou a
vir?”
O rapaz hesitou por um
instante. “É, tipo… sim, ele me trouxe aqui. Eu não podia dizer
não.”
Ela acenou com a
cabeça. “Tu nunca veio num lugar assim antes?”
“Não, nunca.”
“Que idade tu tem?”
O rapaz fez uma pausa,
o olhar atraído novamente pela luz do banheiro. “Dezesseis.”
“E tu nunca transou
antes?”
“Isso é algum
problema pra ti, por acaso?” ele bradou, apoiando os braços na
beira da cama, como se estivesse pronto para ficar de pé.
“Eu não tô te
julgando, querido,” ela disse, com um sorriso complacente, tirando
os cabelos do rosto. “Pra mim não é problema. Eu só tô tentando
te conhecer melhor.”
“Pra quê?” ele
disse, baixando o tom da voz. “Que diferença faz pra ti?”
A mulher deu de ombros.
“Se eu vou ficar aqui dentro contigo por uma hora, pelo menos eu
poderia saber quem tu é.”
“Quem sabe se tu não
souber quem eu sou, e eu não souber quem tu é?” ele retrucou. “Eu
prefiro assim.”
“Tu que sabe, então,”
ela respondeu, levantando-se da cama e esticando os músculos pelo
quarto, quase como se dançasse. “Uma hora é muito tempo pra gente
ficar aqui em silêncio, não acha? Que tal se tu me falar sobre
alguma coisa que tu gosta?”
“Nada do que eu gosto
vai te interessar,” ele disse, tão encolhido sobre si mesmo que
ela nem conseguia ver o rosto dele.
“Ué, tu não sabe,”
ela disse. “Fala alguma coisa.”
O rapaz bufou,
frustrado por não ter coragem de mandá-la parar de falar. “Eu
gosto de astronomia.”
“Ah, tu gosta dos
astros e dos planetas, então?” ela disse, virando-se para ele com
um sorriso afoito. “Então me diz, afinal, Plutão é um planeta ou
não?”
Ele fez uma careta de
desdém. “E isso importa?”
“Ué, se não
importasse, eles não teriam mudado o nome, né? Se Plutão era um
planeta, e agora não é mais, algum motivo tem.”
“Sim, claro que sim,”
ele respondeu. “Tem uma série de características que um paneta
tem que ter pra ser considerado planeta, e Plutão não têm essas
características. É só isso.”
“Tá, e Plutão é o
que, agora, então?” ela disse.
“É um planeta-anão,”
ele respondeu. “Plutão não é o único. Tem outros no Sistema
Solar, só que eu não me lembro o nome. E não é grande coisa o
nome que a gente dá pras coisas; Plutão continua sendo Plutão, e
ele não tá nem aí pro nome que a gente dá pra ele.”
“É, mas tem muita
gente reclamando disso,” ela disse, sentando-se em uma poltrona
vermelha do outro lado do quarto, que ele sequer havia notado.
“Mas aí é porque as
pessoas não têm coisa melhor pra fazer,” ele respondeu. “Gente
chata que reclama de tudo tem em tudo que é lugar. Tem tanta coisa
mais importante pra se preocupar.”
A mulher deu-lhe um
olhar fincado. “Tipo o quê?”
“Tipo as pessoas que
não têm o que comer, que não têm trabalho e não têm dinheiro,”
ele disse. “Tu não acha que isso é mais importante?”
“Eu acho, sim,” ela
disse, “mas as pessoas podem se preocupar com mais de uma coisa ao
mesmo tempo, tu não acha?”
“Talvez,” ele
disse, descruzando os braços, “mas parece que as pessoas só
querem alguma coisa sem importância pra ficar reclamando. Eu detesto
isso.”
“Mas tu não pode te
preocupar com isso, também, querido,” a mulher disse, com um
sorriso caridoso. “Se a gente for se incomodar com tudo que os
outros fazem, a gente não vive.”
“Que bom que tu
consegue fazer isso,” ele respondeu, com um leve sarcasmo.
“Mas tu vê, né? Tu
achou que eu não ia me interessar sobre os teus assuntos, e a gente
acabou de conversar sobre astronomia,” ela disse.
“Sim, mas foi só
sobre Plutão,” ele retrucou, apoiando os braços na cama. “Isso
é pouca coisa.”
“Então me fala de
alguma coisa grande, então!” ela disse. “Me fala de alguma coisa
que tu acha importante.”
O rapaz pensou por um
momento. “Bom, tem o fato de que a maioria da matéria que existe
no Universo é um tipo de matéria que os cientistas não sabem o que
é. Eles chamam de matéria escura.”
“Então como é que
eles sabem que ela existe?”
“Porque, se ela não
existisse, o Universo não seria do jeito que é,” ele disse. “Eles
não enxergam a matéria escura, mas eles observam os efeitos dela.”
“É tipo o vento,
então?”
Ele cogitou por um
momento, e acenou com a cabeça, hesitante. “Acho que sim. Mas o
vento a gente sabe o que é; é o deslocamento do ar. A matéria
escura, ninguém sabe o que é.”
“Entendi,” ela
disse, ajeitando-se na poltrona. “Isso é uma coisa que eu acho
estranho na ciência. Assim, como é que eles podem dizer que uma
coisa existe sem poder mostrar que ela existe? Eles dizem, tá, a
gente não sabe o que esse negócio é, mas a gente vê o efeito
dele. Como é que eles sabem que eles não tão enxergando errado?”
“É, isso pode ser,”
o rapaz disse, descruzando as pernas, “mas eles sempre tentam
buscar a explicação que faz mais sentido. Se eles descobrem que uma
explicação tava errada, eles vão lá e corrigem. Tu sabe que, até
uns cem anos atrás, eles achavam que a luz das estrelas chegava na
Terra porque o Universo era cheio de éter. Demorou anos até eles
descobrirem que não, que o Universo é vazio, e que a luz se propaga
no vácuo. De qualquer forma, quando os cientistas perceberam que
estavam errados, eles se corrigiram. Isso acontece.”
“Sim, mas isso é o
de menos,” ela respondeu. “As pessoas têm que saber admitir
quando erram.”
“Tá, e por que as
religiões não fazem isso?” ele disse, abrindo os braços.
“Quem disse que não
fazem?”
“Ué, várias delas
não fazem,” ele disse.
“Tá, mas não são
todas.”
“Até pode ser que
não, mas tem muita gente que, por causa da religião, fica falando
besteira,” ele disse. “A ciência tem que se corrigir quando
erra, mas os religiosos dizem que, se a Bíblia fala uma coisa, então
ela tem que ser verdade, e ponto.”
“Quantas pessoas tu
conhece que fazem isso?” ela disse, com um olhar inquisitivo.
Ele murchou um pouco,
encolhendo-se na cama. “Na minha família, tem vários.”
“É mesmo?” ela
disse, inclinando-se para frente na poltrona. “Isso te incomoda?”
“Sim, porque daí
eles usam a religião deles pra dizer que os outros estão errados,
mas eles vão lá e fazem coisa pior.”
“Tipo o quê?”
Ele desviou o olhar,
atraído novamente pelo branco estridente do banheiro. “Tipo meu
pai, que vive reclamando que tudo é imoral, que tudo é errado, que
é pecado ser gay, que a mulher tem que se respeitar, e aí me traz
aqui.”
A mulher acenou com a
cabeça. “E tu concorda com as coisas que ele diz?”
O rapaz deu de ombros.
“Em algumas coisas, ele até tem razão, eu acho, mas, tipo, ele
acha que as minhas irmãs têm que se dar o respeito, e quer saber de
tudo que elas fazem na rua, mas então… por que ele não fala isso
de vocês? Tipo, ele deve achar que o que vocês fazem é certo,
senão ele não me traria aqui.”
“E tu acha que é
certo?” ela disse.
O rapaz deu um suspiro
trêmulo. “Eu sei lá. Eu não sei como é a vida que vocês levam,
então eu não posso dizer. Porque assim, se isso é uma coisa que tu
quer fazer, isso não devia ser da conta de ninguém, muito menos da
minha, ou do meu pai.”
“É o que eu acho,
também,” ela respondeu, levantando-se da poltrona. “Eu não
gosto quando as pessoas ficam julgando e criticando e falando mal de
quem faz o que eu faço. Eu acho que eu não tô fazendo mal pra
ninguém, que eu decido o que fazer com o meu corpo, e que ninguém
paga as minhas contas ou cuida do meu filho pra poder opinar no que
eu faço.”
Ele olhou para ela,
surpreendido. “Tu tem um filho?”
“Sim, tenho sim,”
ela respondeu, “e eu cuido dele com toda a atenção e todo o
carinho que eu posso dar como mãe, e, se eu tô aqui, é pra
garantir o sustento dele.”
“E tu não gostaria
de poder trabalhar com outra coisa, ao invés disso?”
“Ué, mas eu
trabalho,” ela disse, caminhando até o banheiro. “Esse aqui não
é o meu único emprego. Quer dizer, agora, nesse momento, é só
isso que eu tô fazendo. Mas eu também tô na faculdade, cursando
Engenharia Elétrica, e ainda tenho vontade de fazer um curso de
pintura.”
Os olhos do rapaz
brilharam por um momento. “Pintura, é?”
“Sim, pintura,” ela
disse, parada na porta do banheiro. “Tu gosta?”
“Eu adoro,” ele
respondeu. “Tipo, eu não acho que eu conseguiria aprender a
pintar, mas eu adoro olhar.”
“Qual é o teu pintor
favorito?”
Ele suspirou, a mente
perdida em um maravilhoso labirinto de cores e imagens que ele
acumulara ao longo daqueles anos. “Ah, são tantos… Eu adoro os
modernistas. Adoro a Tarsila. Mas são vários, vários.”
“Eu já vi algumas
coisas dela num museu,” a mulher respondeu. “É lindo ver ao
vivo. Tu costuma ir em museu?”
O olhar dele caiu de
novo. “Algumas vezes, só. Eu gostaria que o meu pai me levasse,
mas ele acha isso uma bobagem.”
“Mas que pena,” ela
disse, sentando-se na cama. “Mas tu tem que aprender a ir sozinho.
Tu tem as tuas próprias pernas, não?”
“É que eles sempre
querem saber o que eu tô fazendo,” ele disse. “Se eu digo que eu
fui num museu, eles dizem que é perda de tempo.”
“Tu tem que mostrar
pra eles que isso é importante pra ti, e que, se é isso que importa
na tua vida, eles não têm que dar opinião.”
“Ah, e tu acha que é
fácil pra mim dizer alguma coisa?” ele retrucou. “Tu acha que eu
queria tá aqui? Tu acha que eu não preferia tá num museu, se eu
tivesse escolha? Pra mim, isso aqui é que é perda de tempo.”
Ela lhe deu um olhar
interrogativo. “A nossa conversa tá sendo uma perda de tempo pra
ti?”
“Na verdade, não,”
ele disse, olhando para o outro lado, “mas não foi pra isso que
ele me trouxe, né? Ele me trouxe aqui pra eu virar homem, mas, pra
mim, ser homem não tem nada a ver com isso aqui. Ser homem é ter
caráter, é ter cabeça, é ter um futuro, é tratar bem as pessoas.
Isso sim é que importa pra mim.”
“E tu acha que sexo é
perda de tempo?” ela disse, com uma voz suave.
“Pra mim, é,” ele
respondeu bruscamente, cruzando os braços.
“Mesmo com uma pessoa
que tu ama?”
“Não tem ninguém
que eu ame.”
“Tu nunca teve uma
namorada?”
“Não, e isso é
problema meu, tá?” ele disse, fincando-a um olhar atravessado.
“Quer dizer, nem problema é, eu é que não quero uma namorada só
pra eu dizer que eu tenho.”
“Mas não é só pra
dizer que tu tem,” ela respondeu, compassiva. “O bom é a gente
namorar alguém que gosta de verdade. E, assim, se tu nunca encontrou
uma pessoa pra namorar, é uma pena, mas tu não tem a obrigação de
namorar ninguém.”
“Diz isso pro meu
pai, então,” ele disse. “Tenta convencer ele de que eu tô bem
assim, que eu não preciso de uma namorada. Ele é que fica dizendo
que não quer filho viado.”
Ela fez uma breve
pausa, tentando ler a expressão dele. “E tu não é gay?”
“Se eu fosse, eu tava
morto, já,” ele disse, com um pequeno riso frouxo. “Tipo, se eu
quiser continuar vivo, é melhor que eu não seja.”
“Teu pai te bate?”
Ele deu um suspiro
pesado. “Às vezes, só.”
“Entendi,” ela
disse, acenando com a cabeça. “Eu entendo que tu tenha medo, mas
tu tem que lembrar que tu não tem que fazer nada só pra agradar teu
pai, e nem deixar de fazer alguma coisa só porque ele quer que tu
faça.”
O rapaz olhou para ela,
com a testa franzida. “Tu tá tentando me convencer a ir pra cama
contigo, é isso?”
Ela encolheu os ombros,
sorrindo. “Eu é que não. Pra mim não faz diferença. Eu recebo
por hora.”
“Ah, melhor,” ele
disse. “E tu nem pensa em dizer pro meu pai que a gente ficou só
conversando. Aí é que ele me mata de vez.”
“Não, nem te
preocupa, eu não vou dizer nada,” ela disse, pensativa. “Mas,
assim, se ele perguntar o que a gente fez, a gente tem que saber o
que responder.”
Ele lhe deu um olhar
preocupado. “Tá, e o que a gente diz?”
“Não precisa ser
nada de mais,” ela disse. “Eu digo que eu te chupei, e que depois
tu me comeu pela frente, e depois por trás, e que foi gostoso. Só
isso. Não precisa de muitos detalhes.”
O rapaz não pode
deixar de sentir uma repulsa. “Eu espero que eu não precise falar
nada.”
“É, mas, se ele
perguntar, é bom que tu fale,” ela disse, “e sem essa cara de
nojo.”
“Eu vou me esforçar,”
ele disse.
A mulher ficou
observando-o por um tempo. “Tu tem certeza que tu não quer fazer
nada comigo?” ela disse, consultando o horário no celular. “A
gente ainda tem tempo.”
“Não quero nada,
não,” ele disse, com um tom suave. “Eu não… conseguiria fazer
isso com alguém que eu mal conheço.”
“Mas tu nunca tentou,
né?”
“Não, mas é que…”
Ele bufou, frustrado. “Eu não vou me forçar a fazer alguma coisa
só porque os outros dizem que eu tenho.”
“Eu sei, eu te
entendo,” ela respondeu. “Mas assim, se tu tiver te reprimindo de
fazer uma coisa que tu queira, que tu tenha vontade, isso também não
é bom. E eu tô aqui pra ti.”
Os olhos dele ficaram
úmidos, e ele apertou os lábios. “Eu não sei se eu tô me
reprimindo ou não,” ele disse. “Tipo… isso faz algum sentido?
Eu não deveria saber?”
“Olha, nem tudo é
tão simples, querido,” a mulher disse. “É complicado saber o
que a gente sente, às vezes.”
“Pois é, sabe, não
é que… Eu não quero ficar sozinho pra sempre, sabe?” o rapaz
disse, enxugando os olhos. “Eu gostaria sim de ter alguém um dia,
mas, tem que ser alguém que eu goste de verdade. Eu queria que o meu
pai entendesse que isso não faz de mim menos homem. Sabe, eu não me
sentiria homem se eu fosse pra cama contigo, sabendo que o meu pai tá
pagando por isso. Isso faz parecer que eu… que eu não tenho
capacidade de fazer isso por conta própria, entendeu? Mas, se eu
disser isso pra ele…”
“É, eu acho que eu
te entendo,” ela respondeu. “Tu acha que, se tu tentar chegar
numa guria, tu vai fazer isso só pra agradar o teu pai?”
O rapaz olhou para o
chão, pensando por um momento. “Eu acho que sim… Será que eu
consigo mudar isso?”
“Consegue, sim,”
ela disse, com uma confiança tão tranquila que quase deixou o rapaz
perturbado. “Mas isso vem com o tempo. Um dia tu vai sentir que tu
é dono da tua vida, e que tu não deve nada pro teu pai. Mas essas
coisas nunca são de uma hora pra outra, e nem sempre é fácil. Eu
demorei muito tempo até conseguir me livrar dos meus pais e tomar
conta da minha vida, mas é porque eu demorei pra perceber que esse
era o problema. Depois que eu entendi isso, foi bem mais fácil.”
“E tu tinha medo dos
teus pais?”
“Durante um tempo, eu
tinha, sim,” ela disse, sem qualquer vestígio de vulnerabilidade.
“Mas foi passando, eu fui criando coragem com o tempo. Não é
fácil, querido, mas tu precisa pensar que tu tem essa capacidade.
Enquanto tu pensar que não tem coragem, vai ser muito mais difícil.”
Ele fez uma pausa, e
olhou para ela, com o canto dos olhos. “Mas não é só pensar, né?
Entre pensar e fazer, tem uma distância grande.”
“Sim, claro que tem,”
ela disse. “Não é só pensar. Mas esse é um começo. É isso que
tu precisa entender. Só lembra que nada que o teu pai pense ou fale
ao teu respeito vai mudar aquilo que tu é. Por mais que ele diga que
tu não é homem, ou que o que tu faça não é coisa de homem, isso
não muda nada. Tu tem que ser aquilo que tu é, e ponto. Se tu não
quer transar comigo, não transa. Se tu não quiser namorar, não
namora. Agora, quando tu sentir que quer namorar, quando tu sentir
que quer transar com uma guria, lembra que isso é uma coisa que tu
tá fazendo por ti mesmo, e por mais ninguém. Nunca esquece disso.”
O rapaz acenou com a
cabeça, e ficou ouvindo o som daquelas palavras ecoar nos ouvidos.
Jamais alguém lhe dera um conselho como aquele, e, por mais que isso
parecesse uma coisa óbvia de se pensar, escutar essas palavras da
boca de alguém fazia uma grande diferença.
“Obrigado por isso,”
ele disse, enfim.
“Que nada, querido,”
ela respondeu. “Já tô me sentindo melhor em te ver mais leve.”
“Me dá um abraço?”
Ela quase riu. “Mas
claro, guri, vem cá!”
Então, a mulher
acolheu o rapaz, com toda a suavidade possível, como se tivesse medo
de quebrá-lo. Ele parecia fraco, diminuto, mas o abraço dele foi
firme, com o vigor de alguma vontade dormente de existir, e a
respiração dele era quente, vibrante.
Ainda havia tempo
sobrando, então os dois deitaram-se na cama, e ficaram em silêncio.
Ele ousou até colocar o braço ao redor dela, apenas para sentir
alguma vida pulsante junto a ele. Ela respirava devagar, com calma,
aproveitando o momento de tranquilidade em um dia que ainda estava
longe de terminar.
domingo, 12 de janeiro de 2020
A Margem do Conforto
Ricardo saiu de casa o mais rápido que pode. A sensação opressiva
da casa dos pais, cheia de gente enfurnada e entediada, estava
deixando-o louco. Aquele veraneio até então era um desastre: chovia
há dias, e o sol recusava-se a mostrar a cara. Naquele dia, a chuva
fizera uma breve trégua. O tempo continuava nublado e ventoso, mas a
temperatura estava agradável, apenas levemente fresca. Ricardo saiu
de casa, apenas para caminhar um pouco.
Ele não
conhecia a praia de Rondinha, e estava quase arrependido de tê-la
conhecido. Não que o lugar fosse horrível: era uma praiazinha até
simpática, pequena porém com alguma civilização. O problema não
era a praia em si, e sim a casa. Tudo o que ele queria era sair de
lá.
Ele foi
andando pela avenida que cortava Rondinha de cabo a rabo, paralela ao
mar. Era uma rua eternamente longa e reta, asfaltada. Ricardo só
queria saber aonde ela o levaria. Ele foi caminhando sabe-se lá por
quanto tempo, até o ponto em que ele nem mais sabia se estava em
Rondinha ainda. Por alguma razão, as casas e as ruas transversais
pareciam diferentes do que antes. Ele sabia que não era mais o mesmo
lugar.
Em um
certo ponto, Ricardo decidiu entrar em uma das ruas transversais, na
direção contrária do mar. Ele foi seguindo uma rua sem calçamento
e sem asfalto, uma simples e larga trilha através da grama. Ele foi
caminhando, só para ver onde aquela rua terminaria. A rua, apesar de
simples, era longa, e atravessava umas outras três ou quatro ruas
transversais. No final, ela parecia terminar em algumas árvores, mas
ele foi caminhando.
Para sua
surpresa, ele encontrou uma série de dunas, como um pequeno oásis
inexplorado no meio da praia. Ele foi caminhando, enfiando os pés na
areia fofa, escalando algumas das pequenas dunas. Atrás dele ficava
o resto da praia e o mar, e diante dele, apenas árvores. Aquele sim
era um lugar diferente.
Ricardo
foi subindo uma duna alta, que se erguia orgulhosa no meio das
outras. A subida foi árdua, e, na metade do caminho, ele já estava
cansado, com areia grudada nas pernas até o joelho. Mas ele
continuava. Ele só queria saber como era no topo.
Ao chegar
lá, ele teve uma vista bastante empolgante do local. Era possível
ver de um lado as árvores que circundavam as dunas, e o vasto campo
que se estendia por trás delas, e do outro o mar. Mais curiosamente:
ao seu lado, sentado na beira da duna, virado na direção da serra,
estava um rapaz sentado.
Não era
possível ver muito bem como era o rapaz, pois ele estava de costas
para Ricardo. Apenas se podia ver que ele tinha cabelos escuros,
ondulados, e costas largas, e que ele estava usando apenas o que
parecia ser uma sunga branca. Não dava pra ver mais nada. Ricardo
ficou um pouco mistificado com aquela presença ali, mas decidiu
aproximar-se, e sem fazer barulho, sentou-se ao lado do rapaz. Ele
parecia apenas ignorar a presença de Ricardo.
O rapaz
estava abraçado às pernas encolhidas, puxando-as contra o corpo.
Ele parecia olhar ao longe, sem muita expressão, como se apenas
esperasse algo. Os dois ficaram sentados, em silêncio, por algum
tempo. Ricardo pensava em puxar alguma conversa, mas não se sentia
muito à vontade com isso. Ele tinha, porém, vontade de saber quem
era aquele rapaz, que, pelas feições faciais, parecia ter uma idade
parecida com a dele; talvez um pouco mais jovem, perto dos vinte ou
vinte-e-pouquinhos.
“Tu
gosta da vista aqui?” Ricardo disse finalmente.
O rapaz
sacudiu a cabeça. “Eu não vim aqui por causa da vista,” ele
disse, com uma voz áspera, grave, talvez um pouco fraca.
Ricardo
apenas silenciou, olhando para a serra ao longe.
“Eu tô
te incomodando?”
“Não,”
o rapaz disse, sem olhar para Ricardo.
“Se eu
estiver, eu posso ir embora.”
“Faz o
que tu quiser, cara.”
Ricardo
não conseguia identificar se aquilo era desprezo, desconforto, ou
mera neutralidade. Na dúvida, ele decidiu ficar ali, ainda com
vontade de conhecer melhor aquele rapaz e saber por que ele estava
ali; talvez fosse pelo mesmo motivo que ele? Ricardo tentava imaginar
como ele reagiria se os papéis fossem invertidos. Não dava: era
primeiro necessário saber, no mínimo, por que o rapaz estava ali.
Aparentemente não era pela vista.
“Tu
gosta desse lugar?” Ricardo disse, logo percebendo como era
estúpida a pergunta.
“Sei
lá,” o rapaz respondeu, cerrando um pouco os olhos. “Eu não tô
aqui por isso.”
Ricardo
começou a sentir uma certa hostilidade. “Cara, se eu tiver te
incomodando, eu posso ir embora.”
“Eu já
disse, faz o que tu quiser.”
“Eu só
não quero te causar nenhum incômodo,” Ricardo disse.
“Então
só não encosta em mim.”
A resposta
fora esquisita, apesar de sensata. Ricardo ficou um pouco aliviado
por ainda poder falar, e tentar quebrar o gelo.
“Por que
eu faria isso?” ele disse. “Tu é bonito, mas a gente nem se
conhece.”
O rapaz
olhou-o de repente, virando o rosto em um gesto dramático, com o
cenho franzido. “Que comentário foi esse?”
“Cara,
foi só uma piada, desculpa!” Ricardo disse, erguendo as mãos. “Eu
só tô brincando.”
O rapaz
sacudiu a cabeça, em um gesto de desdém. “Que comentário escroto
esse,” ele disse, em um tom muito menos agressivo do que a frase
sugeria.
“Eu
fiquei curioso por tu estar aqui,” Ricardo disse.
“E tu
não ficou curioso por tu
também tá
aqui?”
Ricardo riu-se de leve. “Na verdade, sim. Se bem que eu sou curioso
por natureza.”
“Então é por isso que tu insiste em falar comigo?”
“Acho que sim,” Ricardo sorriu. “Mas, se tu veio atrás de um
pouco de paz e sossego, que nem eu, eu posso ficar quieto.”
“Não foi por isso que eu vim,” o rapaz respondeu.
“Tudo bem. Eu vim por causa disso,” Ricardo disse, “mas um
pouco de contato humano nunca me fez mal.”
“Então tu não conhece todos os tipos de contato humano,” o
rapaz disse.
Ricardo ergueu as sobrancelhas, surpreso. “É, talvez não.”
Ele fez uma pausa. O rapaz suspirou.
“A natureza é uma coisa incrível, né?” Ricardo prosseguiu.
“A natureza quer nos matar,” o rapaz respondeu.
“Nossa, que coisa negativa.”
“Não é negativo,” o rapaz disse. “É só a verdade. É assim
que a natureza funciona: mata os mais fracos pra que os mais fortes
sobrevivam. Tu nunca percebeu como esse mundo é inóspito pra nós?
Tenta viver por aí, no campo, ao natural, e vê quanto tempo tu
dura. Prum cara que nem nós, é impossível. Tem milhares de
maneiras diferentes de a gente morrer, uma pior que a outra. A gente
só sobrevive no conforto da nossa casa, na nossa cidade, com todas
as conveniências possíveis.”
“E mesmo assim a gente tá aqui,” Ricardo disse, “à margem do
nosso conforto, diante dessa mesma natureza que quer nos matar.”
O rapaz pensou por um instante. “É.”
“É por isso que tu tá aqui?”
“É,” o rapaz respondeu, reticente.
“Sem roupa?”
“Por que?” o rapaz disse, virando-se para ele de novo. “Tem
alguma coisa contra isso?”
“Não, de jeito nenhum,” Ricardo disse, um pouco intimidado. “Pra
usar a tua própria frase, faz o que tu quiser.”
“Ah, bom.”
“Eu só achei curioso,” Ricardo disse.
“Isso
não é curioso,” o rapaz respondeu. “Tu
é que é.”
“Sim, é verdade.”
“Espero que seja só curiosidade mesmo,” ele continuou. “Teu
interesse no que eu tô vestindo não tá me parecendo legal.”
“Ei!” Ricardo protestou. “Tá pensando o quê? Que eu tô te
assediando?”
“Eu não disse nada,” o rapaz disse.
“É, mas tu tá desconfiado assim. Não precisa suspeitar de mim.
Eu tô aqui na boa.”
“Então pra que esse interesse? Não é natural que as pessoas, na
praia, fiquem mais à vontade?”
“Sim, claro,” Ricardo disse, tentando apaziguar. “Mas nesse
tempo ruim, e todo encolhido…”
“Tá, tá bom,” o rapaz disse, frustrado, esticando as pernas.
“Se é isso que tu quer, eu fico bem à vontade.”
Ricardo ficou constrangido por provocar essa reação. O rapaz não
estava vestindo sunga, e sim uma cueca, o que deixou Ricardo um pouco
mais embaraçado ainda.
“Cara, eu te disse, faz o que tu quiser,” ele disse. “Foi só
uma pergunta.”
“Toda pergunta vem de um interesse,” o rapaz respondeu, “e eu
não sei qual é o teu interesse em mim, afinal.”
“Cara, desculpa, eu só queria alguém pra conversar um pouco,”
Ricardo disse. “Eu tô de saco cheio de ficar enfiado em casa com
um monte de gente da família, sem ter uma amizade decente, e, quando
eu te vi aí, eu pensei que, talvez, tu estivesse te sentindo sozinho
também.”
“Eu tô bem, assim,” o rapaz disse.
“Então, nesse caso, tu não precisa se irritar quando eu te
pergunto por que tu veio aqui.”
“Eu já respondi, é pra eu me sentir na margem de não sei o que
lá.”
“À margem do conforto?”
“É, isso,” o rapaz disse.
“Então tudo bem,” Ricardo disse. “Talvez a gente possa
compartilhar essa ocasião?”
O rapaz deu de ombros. “Pode ser.”
“Pode me dizer o teu nome?”
O rapaz suspirou, resignado. “Marcelo,” ele disse.
“Prazer, eu sou Ricardo.”
Ricardo estendeu a mão para apertar a dele. Marcelo olhou-o por um
momento, e apertou-lhe a mão, enfim. “Prazer.”
Os dois viraram-se para frente de novo.
“Então, à margem do conforto?” Ricardo disse, sem saber o que
esperar em resposta.
“É,” Marcelo respondeu, com um suspiro.
“Sabe, eu gosto da vista daqui,” Ricardo continuou. “Não é
nada de espetacular, ou extraordinário… mas, eu acho, é por isso
mesmo que eu gosto. Não tem nada de especial; e por isso mesmo é
especial.”
“Que papo louco,” Marcelo respondeu. “Podia passar o baseado,
pelo menos.”
Ricardo riu. “Não, eu não fumo.”
“Eu também não,” Marcelo disse, dando de ombros. “Não mais.”
“É mesmo? Por que tu não quis mais?”
“Sei lá. Eu só acho que não é mais pra mim. Acho que eu já vi
tudo que eu precisava ver.”
“Tudo, é?”
“Sim, por quê?” Marcelo disse, olhando para Ricardo com uma
expressão fechada.
“Sei lá. Isso faz parecer uma experiência tão desinteressante,”
Ricardo disse.
“É porque é mesmo,” Marcelo respondeu. “Ou melhor, é porque
fica assim depois de um tempo.”
“Nossa… então tá.” Ricardo parou de falar, procurando algum
assunto. “Espero que não volte a chover.”
Marcelo apenas deu de ombros. “Pra mim, tanto faz.”
“Sério?”
“Acho que sim, sei lá.”
“Eu queria saber como tu consegue ser tão indiferente,” Ricardo
disse.
“Isso ia mudar alguma coisa pra ti?”
“Claro que sim! Eu ia te entender melhor.”
“Não tem nada pra entender.”
Ricardo olhou para ele de novo, em um gesto simbólico. “Eu diria
que sim.”
“Melhor pra ti tentar entender a ti mesmo,” Marcelo respondeu.
“Ué, mas eu me entendo!”
“Duvido.”
“Como assim, duvida?” Ricardo retrucou.
“Ora, me explica então o que exatamente tu viu de tão
interessante em mim que tá te levando a essa conversa.”
Ricardo coçou a testa. “O que eu vi é que tu parecia ter um
interesse parecido com o meu, quando eu te vi sentado aqui.”
“Mas e agora, que tu já sabe que isso não é verdade, qual é o
interesse?”
“Bom, eu te acho um mistério,” Ricardo disse.
“Um mistério!” Marcelo repetiu, desdenhando.
“Ué, e por que não seria? Não é todo dia que eu vejo essa
cena.”
“Vai, confessa, tu te interessou porque tu achou que, já que eu tô
aqui no meio do nada, sozinho, de cueca, eu tô dando sopa,”
Marcelo disse. “Tu acha que eu sou viado, né?”
“Cara, alguém que quisesse ‘dar sopa’ não se meteria em um
lugar tão remoto,” Ricardo respondeu, “e outra, eu não penso
nada a respeito da tua sexualidade.”
“Isso é o que tu diz,” Marcelo retrucou. “E tu, é viado?”
“Isso não vem ao caso.”
Marcelo riu. “A maneira mais evasiva de dizer que sim.”
“Olha, cara, eu sou bi, tá legal?” Ricardo disse, um pouco
incomodado. “Mas eu repito, isso não vem ao caso.”
“Claro que sim. É por isso que tu tá aqui.”
“Não, não é,” Ricardo disse, frustrado. “Eu não quero que
tu insinue isso.”
“Tudo bem, como tu quiser.”
Os dois fizeram uma pausa.
“É sério, parece que tem alguma coisa te incomodando muito,”
Ricardo disse. “Não acho que tu seja sempre assim.”
“Que motivo tu tem pra achar isso?”
“Sei lá, cara; um pressentimento, talvez.”
“Quer dizer, tu só quer acreditar no que é mais confortável pra
ti. À margem do conforto. Sei,” Marcelo disse, com um sarcasmo não
muito convincente. “Se tu quisesse mesmo ficar à margem do
conforto, tu pensaria exatamente o contrário: que eu sou assim
mesmo, e que a qualquer momento eu posso dizer alguma coisa que te
machuque muito.”
“Tu não me parece capaz de fazer isso,” Ricardo disse.
“Ah, não?” Marcelo disse, olhando para Ricardo, como se o
desafiasse.
Ricardo riu-se. “Nossa, parece até que eu é que te machuquei.”
Marcelo virou o rosto para frente, pensativo.
“Eu só acho que, se tu fosse essa pessoa mesmo, tu já teria me
machucado.”
Marcelo deu de ombros. “Se tu prefere acreditar nisso, tudo bem,”
ele disse, encolhendo as pernas de novo.
“Tu não tá com frio, não?”
“Não.”
“Quem sabe tu não põe a tua roupa?”
“Não quero,” Marcelo disse.
“Ah, cara, qual é?” Ricardo disse. “Vai morrer de frio aí.”
“Eu não me importo.”
Ricardo pausou por um segundo. “Marcelo, na boa, o que foi que te
aconteceu?”
“Não te interessa.”
“Cara, é sério, se tu tá com algum problema, compartilha comigo.
Esse é o momento.”
“Então compartilha tu os teus problemas,” Marcelo respondeu. “Tu
parece mais a fim disso.”
Ricardo pensou por um segundo. “Então tá bom,” ele disse,
rapidamente tirando a camiseta e largando-a de lado.
“O que tu tá fazendo?” Marcelo disse, em choque.
“À margem do conforto, lembra?” Ricardo disse, tirando a bermuda
e deixando-a de lado também.
Marcelo sentiu seu coração palpitar por um momento, mas logo pensou
que era inútil. Ricardo agora estava apenas de cueca, e encolheu-se
por causa do leve frio. Marcelo percebia pela primeira vez que ele
era bonito, com olhos verdes profundos, rosto saliente e cabelos
longos e ondulados.
“Não dá pra te entender,” Marcelo disse.
“Foi tu mesmo que disse que não tem nada pra entender,” Ricardo
disse.
Marcelo ficou constrangido, e tentou emendar. “Claro que não. Eu é
que não quero.”
Ricardo riu-se baixinho. “Claro que não.”
“Tá, mas já que tu começou com essa palhaçada, vai e me fala
dos teus problemas logo.”
“Tudo bem,” Ricardo disse. “Meus problemas. … é, na
realidade, eu não diria que eu tenha algum grande problema, sabe?”
“Que bom,” Marcelo disse, sem qualquer sinceridade.
“Mas ainda assim eu tenho. Por exemplo… eu diria, a minha
família.”
“Eles não te entendem,” Marcelo debochou.
“Não, até não é isso,” Ricardo respondeu sem perder a pose.
“Mas eu não me sinto à vontade no meio deles. É muita gente
junta, muito ego, muita aparência. Eu diria que, talvez, eu tenha
uns dois primos com os quais eu me dou muito bem e posso passar
bastante tempo juntos; mas, quando é muita gente junta, eu não fico
bem. É muita abobrinha, sabe?”
“Ah, sim, monsieur Descartes,” Marcelo debochou de novo.
“Esses reles maltrapilhos só sabem falar sandices.”
“Sem dúvida, monsieur Diderot,” Ricardo respondeu.
Marcelo olhou para ele, com estranhamento. “Descartes e Diderot não
viveram na mesma época.”
Ricardo deu de ombros. “E daí? Eles já morreram!”
“É,” Marcelo disse, olhando para frente, como se admitisse a
derrota. “Mas que bom pra ti se esse é o teu grande problema.”
“Bom, eu não sei se esse é o maior deles,” Ricardo disse,
apoiando os braços sobre os joelhos. “Foi o primeiro que me veio à
cabeça. Tem um monte de parente meu lá em casa, agora, e eu tava de
saco cheio de ficar trancado em casa com eles por causa da chuva.”
Marcelo respondeu apenas com um gesto vago.
“Tu tá com a tua família também?” Ricardo disse.
“Não. Tô com uns amigos meus,” Marcelo disse. “Quer dizer,
amigos, exatamente, não. A maioria é conhecido de colégio, ou
amigo do amigo, ou coisa assim.”
“E tu não quis ficar com eles?”
Marcelo despistou de novo. “É, basicamente. Mas a gente tava
falando dos teus problemas.”
“Sim, é verdade,” Ricardo disse, resignado. “Bom, nesse ano eu
tenho que começar o TCC. Eu tô meio assustado com isso.”
“Claro,” Marcelo disse, em tom de deboche de novo. “Nada mais
assustador que o privilégio de cursar uma faculdade.”
“Epa, eu não disse isso!” Ricardo disse. “Claro que,
infelizmente, é um privilégio pra poucos, principalmente em se
tratando de uma faculdade pública. Mas nem por isso significa que é
fácil.”
“Depende do curso,” Marcelo disse.
“Eu não sei. Eu não conheço os outros.”
Marcelo suspirou, ao perceber que sua curiosidade por Ricardo
aumentava. “Tá cursando o quê?”
“Física.”
Marcelo ergueu as sobrancelhas. “Ok, tu mereceu o meu respeito.”
Ricardo deu uma risada. “Porra, é a primeira vez que tu demonstra
alguma admiração por mim.”
“Fazer o quê?” Marcelo disse dando de ombros. “Eu admiro quem
consegue estudar exatas. Não foi por querer.”
Ricardo sacudiu a cabeça, sorrindo. “Tu tá na faculdade também?”
“Sim,” ele respondeu. “É Letras, antes que tu me pergunte.”
“Ah, é?” Ricardo disse com interesse. “Tu gosta disso, é?”
“Não,” Marcelo retrucou, “é que eu quero passar a vida
morrendo de fome, mesmo.”
Os dois silenciaram por um momento.
“Incrível como ninguém entende por que eu decidi cursar isso,”
Marcelo disse, em tom de confissão.
“Ué, mas esse não foi o meu caso,” Ricardo disse.
“Ah, sim,” Marcelo retrucou. “A maneira de perguntar pode
mudar, mas é sempre a mesma coisa: eu só faço Letras porque eu não
tive capacidade de entrar em outra coisa, porque eu não sou que nem
os gênios lá da Informática.”
“Por isso que eu perguntei se tu gosta disso,” Ricardo disse,
“porque eu achei que fosse esse o caso.”
“A emenda saindo pior que o soneto,” Marcelo disse.
“Vai te foder,” Ricardo respondeu.
Marcelo olhou para ele, chocado, mas aliviou-se ao ver que Ricardo
não estava falando sério. Ele riu um pouco. “A primeira coisa
realmente sincera que tu disse até agora.”
Ricardo olhou para ele, com uma expressão interrogativa. “Tu não
acha isso de verdade, né?”
“Sei lá, foi só uma provocação.”
“É difícil às vezes saber se tu tá falando sério ou se tá só
tirando sarro.”
“Eu gosto de te confundir,” Marcelo disse.
Ricardo sacudiu a cabeça, rindo-se. “Que filho da puta.”
“Ninguém mandou vir falar comigo.”
“Ah, não vem com essa! Eu sei muito bem que no fundo tu quer que
eu fique aqui,” Ricardo disse. “Agora é a tua vez de falar dos
teus problemas. Eu já falei dos meus.”
“O azar é teu,” Marcelo disse.
“Não tem essa, não,” Ricardo insistiu. “Me diz agora o que é
que tá te incomodando afinal.”
“Eu não quero,” Marcelo respondeu, em um tom
repentinamente alto.
Ricardo fez uma pausa, percebendo que talvez atingisse um ponto
sensível. “Cara, tudo bem, não fica irritado,” ele disse.
“Olha, quem sabe a gente não vai dar uma volta?”
“Não,” Marcelo disse, com um olhar duro, fixo à sua frente.
“Tem certeza?” Ricardo disse. “A gente pode sair e procurar um
lugar pra tomar um café, alguma coisa assim.”
“Eu não quero sair daqui,” Marcelo interrompeu, enfático.
“Tá, tudo bem,” Ricardo disse, dando de ombros. “Foi só uma
sugestão.”
Marcelo ficou em silêncio.
“Eu só… Só tô meio preocupado com o tempo,” Ricardo
continuou. “Tô com a impressão de que vai chover de novo. É
sério, acho que é melhor a gente ir indo.”
“Eu não vou mais sair daqui.”
Ricardo pausou. “Como assim, não vai mais sair? Tu tem que ir pra
casa.”
“Não.”
“E vai ficar aí pra sempre? Vai morrer de inanição?”
“Azar.”
“Não, cara, nem pensar!” Ricardo disse. “Vem que eu te levo
pra casa.”
“Não faz diferença,” Marcelo respondeu.
“Claro que faz, cara, não diz isso. Tu precisa voltar.”
“Eu só sirvo pra ser odiado.”
Ricardo parou, um pouco chocado. “Eu gosto de ti!”
“Não inventa.”
“Ô, Marcelo, de onde tu tirou isso?” Ricardo disse, virando-se
para ele. “Que história é essa de ser odiado?”
“Cara, eu sou viado, entendeu?” Marcelo disso, jogando as mãos
para os lados. “É isso que eu sou. Se é isso que tu quer ouvir,
então tá aí.”
Ricardo continuou virado para ele, com um olhar terno. “E só por
isso tu acha que tu serve pra ser odiado?” ele disse. “Marcelo,
tu sabe que isso não é verdade.”
“Vai-te à merda,” ele respondeu. “Tu sabe muito bem que é
assim mesmo. Tu nem mesmo é hétero, e devia saber disso muito bem.”
“Ah, cara, eu sei que tem gente que não aceita, não tolera,
enfim; mas não é por isso que tu vai te enfiar aqui e não vai
voltar pra casa nunca mais! Eu tenho certeza de que tem gente lá que
te ama, e não quer que tu vá embora; e, mesmo que isso não fosse
verdade, eu repito: eu gosto de ti.”
Ricardo disse isso sem segundas intenções, mas teve que admitir
para si mesmo que Marcelo era bastante atraente. Agora, porém, não
era o momento para pensar nisso. Marcelo apenas suspirou.
“Vem, cara, eu te levo pra casa.”
“Eu não posso.”
“Claro que pode!” Ricardo disse, preparando-se para levantar.
“Põe a tua roupa e vamo lá.”
“Não dá,” Marcelo disse.
“Por que não?”
Marcelo esfregou a testa, como se estivesse exausto. “Eu não sei
onde tá.”
“Não sabe onde tá o quê?”
“A minha roupa, animal,” Marcelo retrucou. “Eu não sei onde tá
a minha roupa. O que, tu acha que eu gosto de andar de cueca na rua?”
“Mas… mas então…” Ricardo parou, e novamente virou-se para
ele. “Marcelo, como é que tu veio parar aqui?”
Marcelo afundou o rosto entre os joelhos, respirando profundamente.
“Cara, o que te aconteceu?” Ricardo disse, com um tom mais grave.
“Alguém fez alguma coisa contigo?”
Marcelo apenas bufava entre os joelhos.
“Me conta, cara,” Ricardo insistiu. “Se alguém fez alguma
sacanagem contigo, me conta.”
Após uma longa pausa, então, Marcelo ergueu o rosto, e respirou
fundo.
“Ontem à noite, o pessoal resolveu sair, e foi prum bar que tem
por aqui, que ia ter um negócio de noite. Eu fui junto, mas eu não
tava curtindo tanto assim. Eu decidi ir embora, e a casa ficava um
pouco longe do bar, e eu tinha que ir a pé.” Marcelo limpou rosto
com os braços. “Aí uns quatro caras chegaram perto de mim e
começaram a me provocar e me xingar. Eu fiquei com medo, mas não
falei nada, só continuei andando, e eles continuaram atrás de mim.
Quando eu vi, eles tavam me cercando, e eu tive que parar. Eles
começaram a chegar perto, eu já tava com medo. Eu achei que eles
iam me bater. Eles me mandaram tirar a roupa, e eu fiz, fiquei assim
como eu tô agora. Eu pensei em gritar, mas eu pensei que ninguém ia
me ouvir, e eles iam acabar me espancando.”
Marcelo falava tudo olhando fixamente para frente. Ricardo apenas
ouvia, em silêncio, com uma terrível angústia que crescia dentro
do estômago.
“Aí um deles veio com um galho de árvore, eu acho, alguma coisa
assim, e me mandou deitar de bruços no chão. Eu não sabia o que
eles iam fazer, então eu fiquei esperando o pior.” Marcelo teve um
calafrio, e tentou conter-se, respirando fundo. “O cara batia com o
galho na minha bunda, e eles riam, me xingavam. O cara do galho
começou a bater forte, já tava doendo, aí ele pegou o galho e
começou a…”
Marcelo apertou os olhos, como se tentasse reprimir alguma coisa. “Eu
só tentava aguentar, ficar quieto. Eles ficaram assim por um tempão.
até que um deles mandou eu me levantar e correr, e eu corri. Eu
nunca corri tanto na minha vida. Eles me fizeram correr na direção
contrária de casa, e eu fiquei com medo de voltar. Foi isso que
aconteceu.”
Ricardo ouvia a história com a boca aberta e os olhos arregalados.
“E o que aconteceu depois disso?”
“Aí eu tive que me encolher em um canto pra tentar dormir. Me meti
nos fundos de uma casa, eu acho que tava vazia. Eu só pensava em me
esconder, pra ninguém me encontrar. Aí, quando eu acordei, eu só
queria ficar longe de todo mundo, de qualquer pessoa. Eu não queria
que ninguém me visse, não desse jeito. Aí eu fiquei aqui.”
“Então tu não voltou pra casa?”
“Não.”
“Mas, Marcelo! Os teus amigos devem estar apavorados atrás de ti!”
“Que nada,” ele disse. “No máximo eles devem achar que eu fui
dormir na casa de alguém.”
“Eles não tentaram te ligar?”
“Meu celular ficou em casa.”
“Cara, tu precisa voltar pra casa, agora,” Ricardo disse.
“Eu não quero.”
“Marcelo, tu tá louco? Tu tá esse tempo todo sem comer e sem
beber nada? Vem comigo, que eu te levo lá.”
“Eu não quero ver mais ninguém,” ele disse. “Eu tô com medo
de sair daqui.”
Ricardo suspirou. “Cara, tu não pode ficar assim por causa de uns
babacas que te fizeram isso. Tu não pode deixar que eles te afetem.”
“Não são só esses caras,” ele disse. “Tem muito mais gente
que faria exatamente a mesma coisa se tivesse coragem. Se até aqui,
nesse cu de mundo, isso me aconteceu, imagina em outros lugares? Não,
eu não quero mais isso.”
Ricardo baixou a cabeça, transtornado, tentando pensar em outra
abordagem. “Eu já apanhei por causa disso, sabia?”
Marcelo deu-lhe uma olhada rápida, curioso, mas logo olhou para
frente.
“Foi na época de colégio, ainda,” Ricardo prosseguiu. “Tinha
um guri que eu gostava, e eu achava que ele tava me dando mole. Aí
um dia eu falei com ele, e contei sobre mim, e descobri que ele não
gostava de guris. Eu nem cheguei a dar em cima dele nem nada, a gente
só conversou. Só que ele falou de mim pruns outros caras, e eles me
bateram na saída do colégio. Eu fiquei muito mal, fiquei dois dias
em casa. Depois, eu tinha medo de ir pro colégio. Eu tinha medo que,
a qualquer momento, eles fizessem tudo aquilo de novo. Eu achava que
eles podiam me matar se eles quisessem.”
“Não precisa inventar história só pra me consolar,” Marcelo
disse.
“Tu acha que eu tô inventando, é? Olha isso aqui.” Ricardo
mostrou-lhe uma cicatriz perto do olho esquerdo. “Eu carrego isso
daqui até hoje. Eu poderia ter feito que nem tu, se eu quisesse,”
ele disse. “Mas eu preferi insistir e continuar a minha vida.”
“Que bom pra ti,” Marcelo respondeu.
“Tu também consegue isso.”
“Eu não quero.”
“Mas, Marcelo,” Ricardo insistiu, virando-se para ele. “Vão
ser poucos que vão te tratar assim, e outros muitos vão gostar de
ti; e alguns ainda vão te amar. Tu não acha que isso vale a pena?”
“Eu não sei. Eu já perdi as esperanças de ser amado por alguém.”
“E se eu te amasse?” Ricardo disse.
“Não, para com isso,” Marcelo respondeu. “Tu nem me conhece.
Cai fora. Eu não quero essa pena disfarçada de amor, sai pra lá.”
“Não é pena, Marcelo. Eu não quero só sentir pena de ti e
esquecer depois. Eu quero te levar pra tua casa, e só ir embora
quando eu tiver certeza de que tu vai ficar bem.”
Marcelo suspirou. “Então tu vai morrer aqui comigo.”
“Não, nem pensar,” Ricardo disse. “Tu vai embora comigo, de
algum jeito.”
Marcelo sacudiu a cabeça, sem saber o que dizer. “Desiste, cara.”
“Não, eu não vou desistir. Eu olho dentro dos teus olhos e eu
percebo que tu não quer ficar aqui pra sempre. Tu quer continuar
vivendo, eu sei!” Ricardo disse. “Mesmo que seja só o teu
instinto de sobrevivência, não importa, tu ainda não desistiu. Tu
pode achar que vai ser ruim ter que encarar as pessoas depois de ter
passado por isso, mas vai ser pior morrer aqui. Eu sei que tu quer
alguém que te ame, e é por isso que tu precisa sair e voltar pra
casa.”
Marcelo deixou a cabeça cair sobre os joelhos. “Eu não quero
passar por isso de novo.”
“Claro que não quer, Marcelo. Mas, se tu ficasse aqui,
significaria que aqueles caras conseguiram o que eles queriam. Eles
teriam destruído a vida de mais um cara que não é que nem eles. Tu
não pode dar essa vitória pra eles!”
“Como se eles se importassem com a minha vida,” Marcelo disse.
“Claro que se importam!” Ricardo respondeu. “Por que tu acha
que eles fizeram isso?”
“Foi só pra exercer a superioridade deles.”
“Pois então, tu tem que exercer a tua. A tua vida é muito maior
do que qualquer humilhação que tu passe.”
Marcelo olhou para o chão, refletindo.
“Vem comigo,” Ricardo insistiu. “Eu te levo pra casa. Vai
pelado mesmo, grande coisa.”
“Tu realmente acha que eu vou me sentir melhor com esse discurso
mole?” Marcelo disse. “Tu pode achar que sabe tudo do que eu tô
sentindo, só porque tu já apanhou antes. Mas eu não sou que nem
tu. Eu não consigo ser assim.”
“Assim como? Tu acha que eu sou um super-herói, ou o quê?”
“Não. Eu só não consigo ser insistente que nem tu.”
“Então tu precisa tentar.”
Marcelo olhou, de relance, para o rosto hipnótico de Ricardo,
olhando diretamente para ele. Por um instante ele teve vontade de
prender-se naquele olhar e bebê-lo por inteiro, mas ainda faltava
coragem.
“Ricardo, vai embora enquanto é tempo.”
“Eu não saio daqui sozinho.”
Marcelo suspirou, olhando para frente. O frio parecia ter aumentado,
e o céu já estava bem mais carregado do que antes.
“Cara, se eu sair daqui contigo, eu vou te dever a minha vida,”
Marcelo disse. “Eu não sei o que eu poderia fazer em troca.”
“Marcelo, tu tá louco?” Ricardo disse. “Se isso é coisa pra
se pensar! Tu não vai me dever nada. A única coisa que tu pode
fazer por mim é exatamente isso: voltar pra tua casa. Sem dívida
alguma.”
Os dois ouviram um trovão distante. O céu estava armado para a
chuva.
“Cara, vamo sair daqui agora, se tu não quer que um raio
caia na tua cabeça.”
Marcelo cogitou por um segundo, que pareceu durar mil anos. Em seu
íntimo, ele certamente queria sair e ir com Ricardo onde quer que
ele fosse. Por outro lado, havia aquele sentimento, uma energia
oculta, que queria mantê-lo preso ali, e que ele nem mais sabia o
que era. Não é que Marcelo quisesse ficar ali; o querer, por si só,
não fazia diferença.
Ele ouviu outro trovão, e algo despertou dentro dele. Havia outra
energia que queria arrancá-lo dali. O olhar de Ricardo era intenso,
pesado, e ele não estava disposto a ir embora sozinho.
Em um gesto súbito, Marcelo pôs se de pé. Ricardo apanhou suas
roupas, aliviado.
Os dois desceram o mais rápido que podiam daquela duna, enchendo as
pernas de areia. Antes que eles conseguissem ir longe, a chuva
começou a cair.
“Vem, Marcelo, rápido!”
Ricardo tinha um medo terrível que um raio pudesse atingi-los ali,
no meio daquela areia. Segurando suas roupas em uma mão, com a outra
mão ele tomou a mão de Marcelo e começou a puxá-lo dali. Os dois
brigavam contra a areia fofa, enquanto a chuva ficava mais forte, e
os trovões multiplicavam-se.
Ricardo e Marcelo conseguiram sair da areia, e passaram correndo por
baixo das árvores até chegarem à rua. A chuva tornava-se uma
tempestade, e encharcava as roupas que Ricardo ainda carregava nas
mãos. Os dois correram pela rua, seminus, molhados e com frio.
“Tua casa fica longe?” Ricardo disse aos berros.
“Fica!”
Ricardo estava assustado, e achava que o melhor seria procurar um
abrigo e esperar que a chuva passasse. Já não adiantava parar para
vestir a roupa, pois esta já estava encharcada.
Eles já estavam perto da estrada principal, que estava vazia. Nem
carros passavam.
“Pra que lado?” Ricardo disse.
“Pra lá!” Marcelo respondeu, apontando para a direita.
Os dois seguiram correndo sob a chuva, enquanto os raios continuavam
caindo. Eles já estavam cansados quando encontraram uma loja, ou um
mercado, com um longo telhado cobrindo a entrada. Ricardo conduziu
Marcelo até lá, e eles se encolheram no chão contra a parede,
tentando preservar o pouco calor do corpo. Ricardo abraçou Marcelo,
puxando-o contra o seu corpo. Os dois respiravam forte, cansados.
“Vamo ficar aqui,” Ricardo disse. “Acho que ninguém vai se
importar.”
A tal loja estava fechada e completamente deserta. As poucas casas,
ao redor, estavam todas fechadas. Apenas um carro passou diante
deles, na direção contrária à que eles estavam correndo. Ricardo
até cogitou tentar pegar alguma carona, mas logo constatou que seria
uma péssima ideia.
Marcelo respirava fundo, com o rosto próximo ao pescoço de Ricardo.
Eles ficaram abraçados, assim, conservando o calor um do outro.
“Ricardo,” ele murmurou. “Obrigado.”
“Marcelo, por favor, não faz mais isso,” Ricardo disse. “Eu só
quero que tu fique bem. Só isso.”
“Eu não quero morrer,” Marcelo disse. “Eu não quero ter que
sofrer desse jeito, mas eu não quero morrer.”
“Tu não vai morrer, Marcelo. Tu não precisa morrer desse jeito.”
“Eu não quero morrer. Eu quero ficar contigo.”
Aquela frase escapara da boca de Marcelo. Ricardo lhe deu um olhar
terno.
“Vai ficar tudo bem.”
“Eu quero ficar contigo, Ricardo, contigo.”
Os dois olharam-se, longamente, como se tentassem entender aquele
momento, e enfim beijaram-se. Algo inexplicável levava Marcelo à
beira do êxtase. Ele sentia que poderia entregar-se todo, inclusive
seu corpo, às vontades mais íntimas de Ricardo. Era uma insensatez
completa, mas os sentimentos são assim às vezes. Marcelo
agarrava-o, suas mãos procurando as regiões mais ocultas do corpo
dele, puxando-o contra si. Ricardo apertava sua cintura e suas
nádegas. Os dois trocavam suspiros e beijos pelo peito e pelo
pescoço, até que ambos pararam, interrompidos pelo absurdo da
situação .
“Quer saber?” Ricardo disse, afastando-se um pouco. “Tu até
que fica um gato assim, todo molhado…”
“Morrendo de frio,” Marcelo disse, irônico.
Ricardo deu de ombros. “À margem do conforto, não?”
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