Este conto foi publicado no jornal Seguinte, no dia 22/01/20.
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A mulher abriu o quarto, e o rapaz entrou logo em seguida. Ele mal
tomou conhecimento da deficiência estética do lugar e da escolha
puramente pragmática dos móveis, e apenas sentou-se na cama
enquanto a mulher acendia as luzes.
Pelo menos o quarto era
silencioso, protegido do barulho e da movimentação do andar de
baixo, onde as outras mulheres buscavam atenção dos homens, umas
com um olhar bastante entediado e cansado. O rapaz tentou demorar o
menos que pode para escolher aquela mulher, para livrar-se do
ambiente inóspito e insalubre, de pouca luz, muito ruído, e homens
cuja companhia ele jamais desejaria.…
Ele queria pensar que a
escolha da mulher fora aleatória, apesar de ela ter uma aparência
talvez compatível com os gostos dele; ela tinha não menos do que
trinta-e-poucos anos, mas com algo de jovial na expressão facial e
nos cabelos curtos e lisos, usando óculos, blusa e minissaia
modestas para os padrões da casa, como se tentasse incorporar o tipo
“inocente”. Tudo era apenas um palpite dele, porém. Era a
primeira vez que ele estava ali—e quiçá a última—e ele não
conhecia os tipos, as preferências e os fetiches. Ele seguiu a
intuição, escolheu a primeira que lhe pareceu disponível e subiu
as escadas com ela; tudo sob o olhar onipotente do pai, um senhor de
pouco mais de 40 anos, que tentava parecer mais velho e mais vivido
do que ele era.
Essa era outra coisa
boa de estar no quarto: o pai não estava ali. Estava apenas a
mulher, trancando a porta, e virando-se para ele, já usando de sua
linguagem corporal para tentar agradá-lo.
“Eu só vou tomar um
banho rapidinho antes da gente começar, tá bom?” ela disse.
O rapaz deu de ombros,
exagerando a expressão de desdém. “Faz o que tu quiser.”
Ela parou, encarando-o
por um instante. “Eu tô aqui pra fazer o que tu quiser, moço.”
“Então não faz
nada,” ele retrucou, cruzando os braços, olhando para um canto
qualquer da sala.
O banheiro tinha as
paredes de cerâmica branca, que contrastava com as cores escuras e
abafadas do quarto, e gritava nos olhos dele. Ele tinha os braços e
as pernas cruzadas, tentando não reparar em nada, mas o berro branco
do banheiro irritava-lhe.
A mulher deu um
sorriso, disfarçando a perplexidade. “Não fazer nada? Tem
certeza?”
“Sim. Tenho, sim”
ele disse.
“Mas daí a gente vai
passar uma hora aqui parado?” ela disse, sentando-se ao lado dele,
o tom de voz já um pouco diferente.
“É, melhor assim,”
o rapaz respondeu, tentando manter o tom decidido, apesar da voz
murcha.
“Se tu não se
importa de perguntar,” ela disse, após uma pausa, “tu veio aqui
por quê?”
Ele olhou para a mulher
com o canto dos olhos, por um breve instante. “Por causa do meu
pai, tu não viu?”
“Ele te obrigou a
vir?”
O rapaz hesitou por um
instante. “É, tipo… sim, ele me trouxe aqui. Eu não podia dizer
não.”
Ela acenou com a
cabeça. “Tu nunca veio num lugar assim antes?”
“Não, nunca.”
“Que idade tu tem?”
O rapaz fez uma pausa,
o olhar atraído novamente pela luz do banheiro. “Dezesseis.”
“E tu nunca transou
antes?”
“Isso é algum
problema pra ti, por acaso?” ele bradou, apoiando os braços na
beira da cama, como se estivesse pronto para ficar de pé.
“Eu não tô te
julgando, querido,” ela disse, com um sorriso complacente, tirando
os cabelos do rosto. “Pra mim não é problema. Eu só tô tentando
te conhecer melhor.”
“Pra quê?” ele
disse, baixando o tom da voz. “Que diferença faz pra ti?”
A mulher deu de ombros.
“Se eu vou ficar aqui dentro contigo por uma hora, pelo menos eu
poderia saber quem tu é.”
“Quem sabe se tu não
souber quem eu sou, e eu não souber quem tu é?” ele retrucou. “Eu
prefiro assim.”
“Tu que sabe, então,”
ela respondeu, levantando-se da cama e esticando os músculos pelo
quarto, quase como se dançasse. “Uma hora é muito tempo pra gente
ficar aqui em silêncio, não acha? Que tal se tu me falar sobre
alguma coisa que tu gosta?”
“Nada do que eu gosto
vai te interessar,” ele disse, tão encolhido sobre si mesmo que
ela nem conseguia ver o rosto dele.
“Ué, tu não sabe,”
ela disse. “Fala alguma coisa.”
O rapaz bufou,
frustrado por não ter coragem de mandá-la parar de falar. “Eu
gosto de astronomia.”
“Ah, tu gosta dos
astros e dos planetas, então?” ela disse, virando-se para ele com
um sorriso afoito. “Então me diz, afinal, Plutão é um planeta ou
não?”
Ele fez uma careta de
desdém. “E isso importa?”
“Ué, se não
importasse, eles não teriam mudado o nome, né? Se Plutão era um
planeta, e agora não é mais, algum motivo tem.”
“Sim, claro que sim,”
ele respondeu. “Tem uma série de características que um paneta
tem que ter pra ser considerado planeta, e Plutão não têm essas
características. É só isso.”
“Tá, e Plutão é o
que, agora, então?” ela disse.
“É um planeta-anão,”
ele respondeu. “Plutão não é o único. Tem outros no Sistema
Solar, só que eu não me lembro o nome. E não é grande coisa o
nome que a gente dá pras coisas; Plutão continua sendo Plutão, e
ele não tá nem aí pro nome que a gente dá pra ele.”
“É, mas tem muita
gente reclamando disso,” ela disse, sentando-se em uma poltrona
vermelha do outro lado do quarto, que ele sequer havia notado.
“Mas aí é porque as
pessoas não têm coisa melhor pra fazer,” ele respondeu. “Gente
chata que reclama de tudo tem em tudo que é lugar. Tem tanta coisa
mais importante pra se preocupar.”
A mulher deu-lhe um
olhar fincado. “Tipo o quê?”
“Tipo as pessoas que
não têm o que comer, que não têm trabalho e não têm dinheiro,”
ele disse. “Tu não acha que isso é mais importante?”
“Eu acho, sim,” ela
disse, “mas as pessoas podem se preocupar com mais de uma coisa ao
mesmo tempo, tu não acha?”
“Talvez,” ele
disse, descruzando os braços, “mas parece que as pessoas só
querem alguma coisa sem importância pra ficar reclamando. Eu detesto
isso.”
“Mas tu não pode te
preocupar com isso, também, querido,” a mulher disse, com um
sorriso caridoso. “Se a gente for se incomodar com tudo que os
outros fazem, a gente não vive.”
“Que bom que tu
consegue fazer isso,” ele respondeu, com um leve sarcasmo.
“Mas tu vê, né? Tu
achou que eu não ia me interessar sobre os teus assuntos, e a gente
acabou de conversar sobre astronomia,” ela disse.
“Sim, mas foi só
sobre Plutão,” ele retrucou, apoiando os braços na cama. “Isso
é pouca coisa.”
“Então me fala de
alguma coisa grande, então!” ela disse. “Me fala de alguma coisa
que tu acha importante.”
O rapaz pensou por um
momento. “Bom, tem o fato de que a maioria da matéria que existe
no Universo é um tipo de matéria que os cientistas não sabem o que
é. Eles chamam de matéria escura.”
“Então como é que
eles sabem que ela existe?”
“Porque, se ela não
existisse, o Universo não seria do jeito que é,” ele disse. “Eles
não enxergam a matéria escura, mas eles observam os efeitos dela.”
“É tipo o vento,
então?”
Ele cogitou por um
momento, e acenou com a cabeça, hesitante. “Acho que sim. Mas o
vento a gente sabe o que é; é o deslocamento do ar. A matéria
escura, ninguém sabe o que é.”
“Entendi,” ela
disse, ajeitando-se na poltrona. “Isso é uma coisa que eu acho
estranho na ciência. Assim, como é que eles podem dizer que uma
coisa existe sem poder mostrar que ela existe? Eles dizem, tá, a
gente não sabe o que esse negócio é, mas a gente vê o efeito
dele. Como é que eles sabem que eles não tão enxergando errado?”
“É, isso pode ser,”
o rapaz disse, descruzando as pernas, “mas eles sempre tentam
buscar a explicação que faz mais sentido. Se eles descobrem que uma
explicação tava errada, eles vão lá e corrigem. Tu sabe que, até
uns cem anos atrás, eles achavam que a luz das estrelas chegava na
Terra porque o Universo era cheio de éter. Demorou anos até eles
descobrirem que não, que o Universo é vazio, e que a luz se propaga
no vácuo. De qualquer forma, quando os cientistas perceberam que
estavam errados, eles se corrigiram. Isso acontece.”
“Sim, mas isso é o
de menos,” ela respondeu. “As pessoas têm que saber admitir
quando erram.”
“Tá, e por que as
religiões não fazem isso?” ele disse, abrindo os braços.
“Quem disse que não
fazem?”
“Ué, várias delas
não fazem,” ele disse.
“Tá, mas não são
todas.”
“Até pode ser que
não, mas tem muita gente que, por causa da religião, fica falando
besteira,” ele disse. “A ciência tem que se corrigir quando
erra, mas os religiosos dizem que, se a Bíblia fala uma coisa, então
ela tem que ser verdade, e ponto.”
“Quantas pessoas tu
conhece que fazem isso?” ela disse, com um olhar inquisitivo.
Ele murchou um pouco,
encolhendo-se na cama. “Na minha família, tem vários.”
“É mesmo?” ela
disse, inclinando-se para frente na poltrona. “Isso te incomoda?”
“Sim, porque daí
eles usam a religião deles pra dizer que os outros estão errados,
mas eles vão lá e fazem coisa pior.”
“Tipo o quê?”
Ele desviou o olhar,
atraído novamente pelo branco estridente do banheiro. “Tipo meu
pai, que vive reclamando que tudo é imoral, que tudo é errado, que
é pecado ser gay, que a mulher tem que se respeitar, e aí me traz
aqui.”
A mulher acenou com a
cabeça. “E tu concorda com as coisas que ele diz?”
O rapaz deu de ombros.
“Em algumas coisas, ele até tem razão, eu acho, mas, tipo, ele
acha que as minhas irmãs têm que se dar o respeito, e quer saber de
tudo que elas fazem na rua, mas então… por que ele não fala isso
de vocês? Tipo, ele deve achar que o que vocês fazem é certo,
senão ele não me traria aqui.”
“E tu acha que é
certo?” ela disse.
O rapaz deu um suspiro
trêmulo. “Eu sei lá. Eu não sei como é a vida que vocês levam,
então eu não posso dizer. Porque assim, se isso é uma coisa que tu
quer fazer, isso não devia ser da conta de ninguém, muito menos da
minha, ou do meu pai.”
“É o que eu acho,
também,” ela respondeu, levantando-se da poltrona. “Eu não
gosto quando as pessoas ficam julgando e criticando e falando mal de
quem faz o que eu faço. Eu acho que eu não tô fazendo mal pra
ninguém, que eu decido o que fazer com o meu corpo, e que ninguém
paga as minhas contas ou cuida do meu filho pra poder opinar no que
eu faço.”
Ele olhou para ela,
surpreendido. “Tu tem um filho?”
“Sim, tenho sim,”
ela respondeu, “e eu cuido dele com toda a atenção e todo o
carinho que eu posso dar como mãe, e, se eu tô aqui, é pra
garantir o sustento dele.”
“E tu não gostaria
de poder trabalhar com outra coisa, ao invés disso?”
“Ué, mas eu
trabalho,” ela disse, caminhando até o banheiro. “Esse aqui não
é o meu único emprego. Quer dizer, agora, nesse momento, é só
isso que eu tô fazendo. Mas eu também tô na faculdade, cursando
Engenharia Elétrica, e ainda tenho vontade de fazer um curso de
pintura.”
Os olhos do rapaz
brilharam por um momento. “Pintura, é?”
“Sim, pintura,” ela
disse, parada na porta do banheiro. “Tu gosta?”
“Eu adoro,” ele
respondeu. “Tipo, eu não acho que eu conseguiria aprender a
pintar, mas eu adoro olhar.”
“Qual é o teu pintor
favorito?”
Ele suspirou, a mente
perdida em um maravilhoso labirinto de cores e imagens que ele
acumulara ao longo daqueles anos. “Ah, são tantos… Eu adoro os
modernistas. Adoro a Tarsila. Mas são vários, vários.”
“Eu já vi algumas
coisas dela num museu,” a mulher respondeu. “É lindo ver ao
vivo. Tu costuma ir em museu?”
O olhar dele caiu de
novo. “Algumas vezes, só. Eu gostaria que o meu pai me levasse,
mas ele acha isso uma bobagem.”
“Mas que pena,” ela
disse, sentando-se na cama. “Mas tu tem que aprender a ir sozinho.
Tu tem as tuas próprias pernas, não?”
“É que eles sempre
querem saber o que eu tô fazendo,” ele disse. “Se eu digo que eu
fui num museu, eles dizem que é perda de tempo.”
“Tu tem que mostrar
pra eles que isso é importante pra ti, e que, se é isso que importa
na tua vida, eles não têm que dar opinião.”
“Ah, e tu acha que é
fácil pra mim dizer alguma coisa?” ele retrucou. “Tu acha que eu
queria tá aqui? Tu acha que eu não preferia tá num museu, se eu
tivesse escolha? Pra mim, isso aqui é que é perda de tempo.”
Ela lhe deu um olhar
interrogativo. “A nossa conversa tá sendo uma perda de tempo pra
ti?”
“Na verdade, não,”
ele disse, olhando para o outro lado, “mas não foi pra isso que
ele me trouxe, né? Ele me trouxe aqui pra eu virar homem, mas, pra
mim, ser homem não tem nada a ver com isso aqui. Ser homem é ter
caráter, é ter cabeça, é ter um futuro, é tratar bem as pessoas.
Isso sim é que importa pra mim.”
“E tu acha que sexo é
perda de tempo?” ela disse, com uma voz suave.
“Pra mim, é,” ele
respondeu bruscamente, cruzando os braços.
“Mesmo com uma pessoa
que tu ama?”
“Não tem ninguém
que eu ame.”
“Tu nunca teve uma
namorada?”
“Não, e isso é
problema meu, tá?” ele disse, fincando-a um olhar atravessado.
“Quer dizer, nem problema é, eu é que não quero uma namorada só
pra eu dizer que eu tenho.”
“Mas não é só pra
dizer que tu tem,” ela respondeu, compassiva. “O bom é a gente
namorar alguém que gosta de verdade. E, assim, se tu nunca encontrou
uma pessoa pra namorar, é uma pena, mas tu não tem a obrigação de
namorar ninguém.”
“Diz isso pro meu
pai, então,” ele disse. “Tenta convencer ele de que eu tô bem
assim, que eu não preciso de uma namorada. Ele é que fica dizendo
que não quer filho viado.”
Ela fez uma breve
pausa, tentando ler a expressão dele. “E tu não é gay?”
“Se eu fosse, eu tava
morto, já,” ele disse, com um pequeno riso frouxo. “Tipo, se eu
quiser continuar vivo, é melhor que eu não seja.”
“Teu pai te bate?”
Ele deu um suspiro
pesado. “Às vezes, só.”
“Entendi,” ela
disse, acenando com a cabeça. “Eu entendo que tu tenha medo, mas
tu tem que lembrar que tu não tem que fazer nada só pra agradar teu
pai, e nem deixar de fazer alguma coisa só porque ele quer que tu
faça.”
O rapaz olhou para ela,
com a testa franzida. “Tu tá tentando me convencer a ir pra cama
contigo, é isso?”
Ela encolheu os ombros,
sorrindo. “Eu é que não. Pra mim não faz diferença. Eu recebo
por hora.”
“Ah, melhor,” ele
disse. “E tu nem pensa em dizer pro meu pai que a gente ficou só
conversando. Aí é que ele me mata de vez.”
“Não, nem te
preocupa, eu não vou dizer nada,” ela disse, pensativa. “Mas,
assim, se ele perguntar o que a gente fez, a gente tem que saber o
que responder.”
Ele lhe deu um olhar
preocupado. “Tá, e o que a gente diz?”
“Não precisa ser
nada de mais,” ela disse. “Eu digo que eu te chupei, e que depois
tu me comeu pela frente, e depois por trás, e que foi gostoso. Só
isso. Não precisa de muitos detalhes.”
O rapaz não pode
deixar de sentir uma repulsa. “Eu espero que eu não precise falar
nada.”
“É, mas, se ele
perguntar, é bom que tu fale,” ela disse, “e sem essa cara de
nojo.”
“Eu vou me esforçar,”
ele disse.
A mulher ficou
observando-o por um tempo. “Tu tem certeza que tu não quer fazer
nada comigo?” ela disse, consultando o horário no celular. “A
gente ainda tem tempo.”
“Não quero nada,
não,” ele disse, com um tom suave. “Eu não… conseguiria fazer
isso com alguém que eu mal conheço.”
“Mas tu nunca tentou,
né?”
“Não, mas é que…”
Ele bufou, frustrado. “Eu não vou me forçar a fazer alguma coisa
só porque os outros dizem que eu tenho.”
“Eu sei, eu te
entendo,” ela respondeu. “Mas assim, se tu tiver te reprimindo de
fazer uma coisa que tu queira, que tu tenha vontade, isso também não
é bom. E eu tô aqui pra ti.”
Os olhos dele ficaram
úmidos, e ele apertou os lábios. “Eu não sei se eu tô me
reprimindo ou não,” ele disse. “Tipo… isso faz algum sentido?
Eu não deveria saber?”
“Olha, nem tudo é
tão simples, querido,” a mulher disse. “É complicado saber o
que a gente sente, às vezes.”
“Pois é, sabe, não
é que… Eu não quero ficar sozinho pra sempre, sabe?” o rapaz
disse, enxugando os olhos. “Eu gostaria sim de ter alguém um dia,
mas, tem que ser alguém que eu goste de verdade. Eu queria que o meu
pai entendesse que isso não faz de mim menos homem. Sabe, eu não me
sentiria homem se eu fosse pra cama contigo, sabendo que o meu pai tá
pagando por isso. Isso faz parecer que eu… que eu não tenho
capacidade de fazer isso por conta própria, entendeu? Mas, se eu
disser isso pra ele…”
“É, eu acho que eu
te entendo,” ela respondeu. “Tu acha que, se tu tentar chegar
numa guria, tu vai fazer isso só pra agradar o teu pai?”
O rapaz olhou para o
chão, pensando por um momento. “Eu acho que sim… Será que eu
consigo mudar isso?”
“Consegue, sim,”
ela disse, com uma confiança tão tranquila que quase deixou o rapaz
perturbado. “Mas isso vem com o tempo. Um dia tu vai sentir que tu
é dono da tua vida, e que tu não deve nada pro teu pai. Mas essas
coisas nunca são de uma hora pra outra, e nem sempre é fácil. Eu
demorei muito tempo até conseguir me livrar dos meus pais e tomar
conta da minha vida, mas é porque eu demorei pra perceber que esse
era o problema. Depois que eu entendi isso, foi bem mais fácil.”
“E tu tinha medo dos
teus pais?”
“Durante um tempo, eu
tinha, sim,” ela disse, sem qualquer vestígio de vulnerabilidade.
“Mas foi passando, eu fui criando coragem com o tempo. Não é
fácil, querido, mas tu precisa pensar que tu tem essa capacidade.
Enquanto tu pensar que não tem coragem, vai ser muito mais difícil.”
Ele fez uma pausa, e
olhou para ela, com o canto dos olhos. “Mas não é só pensar, né?
Entre pensar e fazer, tem uma distância grande.”
“Sim, claro que tem,”
ela disse. “Não é só pensar. Mas esse é um começo. É isso que
tu precisa entender. Só lembra que nada que o teu pai pense ou fale
ao teu respeito vai mudar aquilo que tu é. Por mais que ele diga que
tu não é homem, ou que o que tu faça não é coisa de homem, isso
não muda nada. Tu tem que ser aquilo que tu é, e ponto. Se tu não
quer transar comigo, não transa. Se tu não quiser namorar, não
namora. Agora, quando tu sentir que quer namorar, quando tu sentir
que quer transar com uma guria, lembra que isso é uma coisa que tu
tá fazendo por ti mesmo, e por mais ninguém. Nunca esquece disso.”
O rapaz acenou com a
cabeça, e ficou ouvindo o som daquelas palavras ecoar nos ouvidos.
Jamais alguém lhe dera um conselho como aquele, e, por mais que isso
parecesse uma coisa óbvia de se pensar, escutar essas palavras da
boca de alguém fazia uma grande diferença.
“Obrigado por isso,”
ele disse, enfim.
“Que nada, querido,”
ela respondeu. “Já tô me sentindo melhor em te ver mais leve.”
“Me dá um abraço?”
Ela quase riu. “Mas
claro, guri, vem cá!”
Então, a mulher
acolheu o rapaz, com toda a suavidade possível, como se tivesse medo
de quebrá-lo. Ele parecia fraco, diminuto, mas o abraço dele foi
firme, com o vigor de alguma vontade dormente de existir, e a
respiração dele era quente, vibrante.
Ainda havia tempo
sobrando, então os dois deitaram-se na cama, e ficaram em silêncio.
Ele ousou até colocar o braço ao redor dela, apenas para sentir
alguma vida pulsante junto a ele. Ela respirava devagar, com calma,
aproveitando o momento de tranquilidade em um dia que ainda estava
longe de terminar.