sexta-feira, 11 de junho de 2021

Terapia do Bolinho (fanfiction)

Este conto é um fanfiction da série My Little Pony: Friendship Is Magic, de propriedade da Hasbro, e é uma continuação do conto Pinkie e o Sem Cérebro, publicado anteriormente.

 


Aquele dia começara com a promessa de ser um dia comum e normal, mas as coisas não transcorreram dessa forma. Dainty Tunes saíra da cama de manhã, lento e tonto como de costume, saíra para trabalhar pelo mesmo trajeto de sempre, e a única coisa diferente naquele dia é que ele teria a tarde de folga. Ele foi para casa, pensando em usar a tarde para trabalhar em alguma música nova ou ensaiar as que ele já tinha, pois ele achava que estava ficando um pouco enferrujado.

Mas isso não ocorreu. Ao sentar-se diante do piano, a vontade de tocar estava ausente. Ele não a tinha. Na verdade, ele não tinha vontade de fazer nada. Ela temia admitir, mas isso já era recorrente: seja lá o que ele pensasse em fazer, ele não fazia. Ele passava os fins de tarde em casa, fazendo uma série de pequenos nadas, esperando a noite cair. Ele tentava crer que isso era apenas uma fase, mas estava piorando.

Dainty foi até a janela da frente e pôs um cotovelo no parapeito, repousando a cabeça no casco. O dia parecia tão alegre e cheio de vida lá fora, e ele poderia sair e aproveitar se ele quisesse. Porém, algo fazia isso parecer fútil e sem sentido, e ele não entendia por quê. Não parecia haver um motivo racional para ele se sentir cabisbaixo e desmotivado, mas qualquer coisa que ele pensasse em fazer parecia inútil. De fato, a própria existência dele era inútil.

Talvez fosse isso. Talvez ele fosse inútil. Afinal, por que ele existia? Havia motivo? Ele podia fazer música, mas não havia qualquer sinal de que Equéstria precisasse de sua música. Tudo estava bem daquele jeito. Na verdade, o mundo inteiro parecia bem do jeito que estava, independente dele.

E o que ele poderia fazer? Ficar em casa e lamentar-se? Será que isso não confirmaria a futilidade de tudo? Talvez as coisas não precisassem ser assim.

Um pensamento ficava cutucando-lhe a mente, e ele começava a prestar atenção nele: em momentos como esse, ele bem que podia comer algo gostoso.

Gostoso… como um bolinho.

Não, ele não podia. Ele fizera a promessa: ele ficaria longe delas. Ele precisava evitá-las, senão as coisas poderiam ficar feias. Muito feias.

Mas aí estava o problema: já estava insuportável ficar evitando a tudo e a todos apenas porque algo potencialmente terrível e inimaginável poderia acontecer. Além disso, os Elementos da Harmonia sabiam quem ele era, então não poderia ser tão errado assim se ele falasse com alguma delas. E, se havia um pônei que poderia ter uma conversa sincera e amistosa com ele, era a pônei que o sequestrara, amarrara-o em uma caverna e tentara fazê-lo sumir.

Sim, isso fazia pleno sentido para ele.

*

Ele trotava por Ponyville, sempre com uma sensação de sobressalto quando ele se sentia observado; mas era sempre alarme falso. Os pôneis não notavam nada estranho nele, então estava tudo bem. Ainda assim, ele ficava mais e mais nervoso enquanto chegava perto da Sugarcube Corner, e a única coisa que o mantinha firme em seu caminho era a promessa de bolinhos.

Enfim, ele chegou, empurrou a porta de leve e entrou. O cheiro era tão bom, tão perfeito, que quase fazia-o esquecer-se de seus sentimentos. Quase. Ele olhava a loja, e tudo parecia tão perfeitamente em seu lugar que ele se lembrava de como o mundo estava bem sem ele.

A Srª Cake estava ocupada preenchendo o balcão com alimentos apetitosos, e não pareceu notar que ele se aproximava. Não havia sinais de Pinkie Pie.

— É, olá?

— Olá, senhor! — a Srª Cake disse com um sorriso largo. — Bem vindo à Sugarcube Corner. Você gostaria de dar uma olhada?

— É, sim, claro — ele respondeu, examinando os bolinhos. Eles eram lindos, e ele pensava que, enquanto ele mantivesse o foco nos bolinhos, o desconforto não o atrapalharia. — Esses bolinhos… são de morango?

— São, sim! Feitos hoje pela manhã! — a Srª Cake disse.

— O aspecto tá ótimo. Eu vou querer… quatro deles — Dainty disse, sem conseguir olhá-la diretamente. — Pra levar, por favor.

— Quatro bolinhos de morango para levar, saindo daqui a pouco! — ela confirmou.

Enquanto ela preparava o pedido, a porta da cozinha abriu-se.

— Acabei de colocar uma fornada novinha em folha para assar, Srª Cake! — Pinkie Pie proclamou. — E está na hora do meu intervalo agora… Oh, olá, Dainty Tunes! Que bom vê-lo na nossa loja! Mmm, bolo de morango! — ela disse, dando um salto até ele. — Ótima pedida! Eles estão uma delícia…. modéstia à parte.

— Eu imagino que estão mesmo, Pinkie — ele disse, enquanto recebia seu pedido e pagava por ele. — Obrigado, Srª Cake.

— Ao seu dispor! — ela respondeu. — Volte sempre!

— Então, Dainty, como vão as coisas? — Pinkie disse com um sorriso fixo em seu rosto, enquanto ele guardava seus bolinhos em seu alforje e encaminhava-se rumo à saída.

— Ah, eu, é, eu tô… bem — ele disse, a voz revelando o contrário.

— Tem certeza? — Pinkie disse, a voz dramática e pungente. — Parece que tem alguma coisa te incomodando.

— Ãh, na verdade… — Ele coçou a crina, olhando para a porta. — Eu acho que tem mesmo.

— Que tal se a gente ir lá pra fora e ter uma conversinha com a Pinkie? — ela disse. — Eu tô no meu intervalo agorinha.

O coração dele palpitou. Embora isso era o que ele imaginava fazer quando foi até ali, era chocante perceber que isso estava prestes a ocorrer, ainda mais que a ideia partira dela.

— É, claro, seria uma boa.

*

— Vamos lá, então, bota pra fora, Dainty! — ela disse assim que eles deram a volta no prédio. — O que é que tá te incomodando?

— Bom… eu não sei como é que eu posso explicar — ele começou —, mas a verdade é que… Tá, assim, Pinkie, você sabe quem eu sou. Você sabe o que eu sou, e o que eu represento neste mundo. O problema é que, eu não sei por que eu tô aqui. Até onde eu sei, me colocaram aqui como uma piada, e é isso. — O olhar dele caiu para o chão. — E é isso que eu sou. Eu sou uma piada. Nada mais do que isso: eu sou só uma piada.

— Mas eu gosto de piadas! — ela disse, quase sem pensar. — Piadas são legais! Elas fazem a gente rir e deixam a gente mais alegre!

— Ah, mas essas são as piadas boas — ele respondeu. — Eu sou uma piada ruim, Pinkie.

Ela levou um casco ao queixo. — Bom, eu acho que piadas ruins existem mesmo — ela ponderou. — Mas eu não acho que você seja isso, Dainty! Você é mais do que isso.

— Será mesmo? — ele disse, erguendo o olhar por um momento. — Quer dizer, parece que este mundo está ótimo sem mim. Tava tudo bem, todo mundo tava vivendo bem, e a minha presença aqui… Quer dizer, que diferença faz? Se eu, tipo, desaparecesse do nada, ninguém ia se importar. E eu sinto que eu poderia fazer isso mesmo. Desaparecer. Em um instante, puf, fui, e ficaria tudo bem.

Ela lhe deu um olhar suspeito, meio de lado. — Bem, talvez tenha algo que te faça sentir assim, mas eu sei que você não quer desaparecer. Quer saber como?

Ele olhou para ela, sem dizer nada.

— Você comprou bolinhos!

Dainty sempre soube que o raciocínio de Pìnkie Pie podia tornar-se uma série de ideias desconexas, mas ele nunca imaginou ser confrontado por isso. A reação dele foi apenas encará-la, esperando que ela continuasse. Mas ela não continuou.

— Tá… e?

— Ué, você não percebe? — ela disse, aproximando-se dele. — Se você quisesse mesmo desaparecer, você teria feito isso mesmo, mas não, você não fez! Em vez disso, você pensou, “hm, o que eu queria mesmo agora é comprar bolinhos!” e você veio aqui e fez exatamente isso. — As frases eram rápidas e acompanhadas de gestos e poses, e tudo parecia fazer sentido para ele.

— Então — ela prosseguiu —, o que você quer mesmo é aproveitar a vida aqui, e essa coisa que te faz querer desaparecer só quer te incomodar, mas você pode fazer ela parar de te incomodar! E, claro, nossos bolinhos são uma excelente maneira de afastar os sentimentos ruins, e é por isso que a Sugarcube Corner estará sempre aqui para servi-lo. O cliente vem sempre em primeiro lugar!

Dainty fez uma pausa, como ele demorasse cinco vezes mais para processar aquilo tudo do que ela precisava para falar. Mas ele percebia que ela tinha razão, até certo ponto: ainda havia, dentro dele, uma centelha de vontade de viver e fazer algo bom para si, apesar do temor de que ela estivesse sumindo.

— Talvez você tenha razão — ele disse. A esta altura, ele estava constrangido por ela dedicar tanto tempo e atenção a ele, ainda mais com a sensação de que ele poderia talvez matar toda a energia e entusiasmo dela; embora isso talvez fosse impossível. — Mas não dá pra viver só de bolinho, né… por mais que eu quisesse — ele disse, com uma risada fraca. — Eu só queria… Eu queria ter a sensação de que a minha vida tem algum valor. Às vezes, eu juro, eu… eu sinto que eu não valho nada.

Ele olhou para ela, tentando manter a compostura. — E isso não é só uma coisa de auto-estima. Você sabe o que eu sou. Não é tipo aqueles dias em que alguma amiga sua está triste com alguma coisa que aconteceu e começa a se sentir, sei lá, fraca, incapaz, ou algo assim. Não é isso, porque elas fazem parte deste mundo. Você faz parte deste mundo, e Equéstria não seria o lugar que é se você e suas amigas não estivessem aqui. Vocês são parte do que torna esse mundo tão maravilhoso, e, tipo, eu não sou. Eu fui jogado aqui por alguém que queria se divertir por um momento, e, agora, eu não tenho propósito.

Ele não deixava de notar a expressão dela enquanto ela escutava, os olhos fixos nele, as orelhas empinadas, compreendendo cada palavra dita, porém encarando-o como se houvesse algo óbvio que apenas ele não percebia. Parecia que ela já tinha todas as respostas, e ele apenas não as via porque não tinha procurado muito bem.

— Mas, Dainty! Se você ainda está aqui, é porque quem te pôs aqui ainda te acha importante — ela disse, sem perder a energia na voz, nem por uma sílaba sequer. — Ele se importa contigo! E isso te dá valor! E ninguém aqui te acha inútil. Na verdade, o único pônei aqui que acha que tu não tem valor é…

— Bom, na verdade — ela disse, refletindo enquanto olhava para o céu. — Não é que você pense que não tem valor. É como se alguma coisa na sua cabeça ficasse dizendo no seu ouvido o tempo todo que você não tem valor, mesmo que você tenha, porque é claro que você tem, mas essa voz tenta te puxar pra baixo porque é só isso que ela faz! É a sua voz “pra baixo”, e ela quer te puxar pra baixo porque é a única coisa que ela consegue fazer, porque ela não é você, ela nunca vai ser você, então ela precisa puxar você pra baixo! Não é essa a sensação?

— É, você talvez tenha razão — ele disse, sabendo que ela tinha plena razão.

— E você quer saber o que você pode fazer com essa voz? — ela disse, o ar cheio de tensão dramática.

— O quê?

— Você pode rir dela! — ela respondeu, pulando de alegria algumas vezes.

— Ah, Pinkie, mas eu não consigo — ele disse. — Tipo, você é o Elemento do Riso, é claro que você pode dar risada diante do medo, porque você tem esse poder. Mas eu não tenho…

Ela manteve uma pose estranha, suspensa em pleno ar. — Ei, espera um pouco! Isso não é verdade! — ela disse, aterrissando de pé no chão. — Eu não sou o Elemento do Riso porque só eu tenho esse poder. É meio que o contrário! Eu existo pra lembrar que todo pônei tem esse poder, e eles precisam encontrá-lo dentro de si, do mesmo jeito que eu! Agora, não que isso seja fácil, tá bom? — O rosto dela estava a centímetros de seu nariz enquanto ela dizia isso, seu olhar perfurando os olhos dele. — Você não vai chegar e, “ah, vou rir agora! Tudo resolvido!” Pode ser complicado e pode demorar, mas você consegue, assim como todo pônei consegue, porque você é um pônei que consegue. E, sempre que você achar que eu posso te ajudar, eu estarei aqui.

Dainty pensou nessas palavras por um instante, e começou a soluçar.

— Ei, eu te deixei triste? — ela disse, um pouco insegura.

— Não, não, não é tristeza — ele disse, secando os olhos. — Eu só… É difícil acreditar que você tá… dizendo essas coisas pra mim, porque… só um amigo diria isso.

— Então, meu amigo, você esperava o quê? — Pinkie disse. — Estamos aqui para isso!

— Obrigado, Pinkie! — Dainty disse, tentando ficar mais calmo. — Obrigado mesmo, eu… Obrigado.

— De nada, de nada e de nada! — ela disse, fazendo-o rir por um momento. — Agora, eu queria perguntar uma última coisinha pra você, se você não se importa! Posso?

Ele deu de ombros. — É, claro, sim.

— Como você perdeu o sotaque?

Dainty parou de súbito, o cenho franzido, a mente em disparada. — Eu… perdi?

— Bom, ainda tem um pouquinho bem pequenininho de sotaque lá no fundo, quando eu presto atenção — ela disse —, mas não é tão carregado quanto no início!

— Eu juro que não tinha notado, Pinkie — ele respondeu —, mas, é, isso é… bom?

— Talvez! Não que seja ruim ter um sotaque — ela disse —, mas talvez você esteja mesmo se acostumando com esse mundo, e isso sim é bom.

— Eu acho que sim, Pinkie — ele disse, sorrindo. — Isso… seria ótimo.

— É verdade, meu amigo Dainty! Agora, eu adoraria conversar mais — ela prosseguiu, a voz dela tornando-se mais baixa e mais veloz —, mas o meu intervalo já terminou uns minutinhos atrás e eu já devia estar trabalhando agora, mas!! Não esquece do que eu te falei, não exige demais de você mesmo, e, o mais importante: aproveite os bolinhos! E tá na hora de ir embora agora. Tchauzinho!

E, com um som de ricochete, ela disparou de volta ao prédio. Ele ficou ali, em silêncio, pensando no que acontecera. Ele sempre tivera tanto medo de interferir na vida dos outros, mas, não só ele tivera uma conversa com Pinkie Pie, mas ele sentia que aquilo estava fadado a acontecer. Afinal, o que Pinkie fizera não era nada fora do normal. Essa era a natureza dela. É por isso que ele a admirava, e por isso que ele quisera ir atrás dela. Então, no fim de contas, não havia nada de anormal naquilo tudo. E isso era surpreendente.

Após secar os olhos, ele ergueu o rosto, certificou-se que os bolinhos estavam em seu alforje, e lembrou-se de Pinkie falando da voz em sua cabeça. Ele quase podia escutá-la como se fosse a voz de outrem, e sua única reação foi rir, por um momento.

— É… talvez eu consiga mesmo fazer isso.

E assim, ele voltou para casa, assobiando uma melodia qualquer.

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